A OUTRA

CAPÍTULO 2

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1 – COBERTURA DE ERIBERTO E STELLA. SALA DE JANTAR. INT. MANHà

 

Silêncio. A sala permanece imóvel — o único som é o suave bater das ondas do mar lá fora, filtrado por vidros que não deixam o luxo ser incomodado pelo mundo real.

Eriberto permanece de pé. Terno azul-escuro impecável. A mão no bolso do paletó, o olhar cortante para Stella, que mantém o olhar firme, mas com a mão trêmula ao redor da xícara.

Consuelo, ao centro da mesa, elegantíssima em vermelho-sangue, morde uma torrada com calma. Rainha de um império emocional que controla sem gritar.

CONSUELO - (sem alterar o tom, como quem cita uma receita) Estávamos apenas comentando que, em certos círculos, mentiras precisam ser bem contadas. Sem rastros. Sem hesitações. Como uma boa peça de teatro.

Eriberto sorri de canto. Frio. Aproxima-se da cadeira, mas não senta.

ERIBERTO - Como você fez com a Paola.

Stella desvia o olhar para o prato, tensa. Consuelo não se abala.

CONSUELO - Sua irmã está morta para mim. O resto é detalhe técnico. (bebe o café com elegância, e em seguida, com frieza) Bastou o corpo de uma indigente e um incêndio controlado numa propriedade abandonada em Visconde de Mauá. O mundo acreditou. E, sinceramente, eu também.

Stella ergue a sobrancelha, debochada.

STELLA - Fogo é útil. Apaga digital, história mal contada. E dá uma linda manchete.

Eriberto fita Stella por um segundo. Avalia se a provocação tem alvo duplo.

ERIBERTO - (puxa o relógio do pulso, impaciente) Infelizmente, tenho uma reunião importante. Os interesses do país vêm antes do prazer da companhia de vocês duas.

Está prestes a sair, mas Consuelo o corta com frieza calculada.

CONSUELO - (baixa o tom, mas o veneno é preciso) Só evite os atalhos. As famigeradas "máfias de precatórios" ainda estão em alta. A primeira campanha grande ninguém esquece. Nem os dossiês.

Eriberto para. Um leve sorriso sem humor.

ERIBERTO - A senhora acha que eu cometeria um erro tão básico?

CONSUELO - (olha para ele com doçura disfarçada) Acho que você herdou minha ambição, Eriberto. Mas nem sempre minha prudência.

ERIBERTO - (ele se aproxima, inclina-se e beija o rosto da mãe) Obrigado, mamãe. Por sempre torcer por mim com essa doçura de metralhadora. (volta-se para Stella — o tom é de aviso velado) Cuidem da casa.
E dos bastidores dela.

Sai. A porta se fecha com elegância.

Stella finalmente solta o ar, tensa. CONSUELO volta à sua xícara, imperturbável.

STELLA – Paola. Você tem certeza que ela morreu?

Consuelo ergue os olhos, sem hesitar.

CONSUELO - Morreu. Pra mim, sim.

CORTA PARA:

CENA 2 – MANSÃO DOS MENDONZA. SUÍTE DE LAURINHA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA – “SUCESSO SEXUAL” – ÂNGELA RÔ RÔ

 

O quarto é amplo. Cortinas pesadas filtram a luz num tom âmbar avermelhado. Há algo de teatral no ambiente — um luxo abafado, silencioso, denso como perfume caro.

Eriberto está sobre Laurinha. O sexo é rápido. Quase urgente. Ele termina com um suspiro rouco e desaba para o lado. Ofegante.

Laurinha, nua, se estica preguiçosamente. Pega um cigarro da mesinha, acende. Traga com calma. O cabelo bagunçado, o olhar afiado — o retrato de uma mulher que sabe o valor do corpo e o preço do silêncio.

LAURINHA - (entredentes, sarcástica) Então esse é o nome da sua nova “reunião importante”? Pelo menos tem “importante” no título.

Eriberto sorri, os olhos semicerrados. Ainda sem fôlego.

ERIBERTO - Você me deixou aceso desde ontem. Precisava aliviar ou ia infartar.

Laurinha leva a mão sob o lençol — fora do enquadramento — com lentidão provocante.

LAURINHA - É sempre bom te deixar no ponto. (pausa, o olhar crava nele) Aguenta mais uma?

ERIBERTO - Aguento várias. Na cama e nas urnas.

Laurinha senta, o lençol escorrega pelas costas nuas. Ela cruza as pernas com naturalidade real. Um corpo seguro, um espírito perigoso.

LAURINHA - Bom saber. Porque entre esse seu desempenho e a presidência, ainda tem Senado, CPI, prévia partidária, escândalos inevitáveis. E, no mínimo, umas três traições de aliados. (pausa dramática) Se tudo der certo. Daqui a uns vinte e cinco anos, chegamos lá.

Eriberto ri, desliza a mão pela coxa dela.

ERIBERTO - Eu tenho fôlego pra isso. E pra te satisfazer enquanto espero. (mira os olhos dela) Mas você aguenta bancar tudo isso?

LAURINHA traga mais uma vez. Solta a fumaça devagar.

LAURINHA - Enquanto você leitar. Eu jorro. (pausa)
Meu falecido me deixou muito. E tédio ainda mais.

Eles se encaram. Sorriem. Um pacto silencioso de carne, dinheiro e poder.

Ela apaga o cigarro. O lençol escorrega mais um pouco.
A música cresce.

CORTE PARA:

CENA 3 – RESTAURANTE NO LEBLON. INT. DIA

 

O restaurante tem vista panorâmica para a orla. O mar do Rio se espreguiça ao fundo. Pessoas caminham, correm, vivem. Lá dentro, o ambiente é fresco, elegante, silencioso.

Na varanda, à mesa do canto, estão Stella e Márcia. 

Duas mulheres idênticas nos traços — mas opostas na postura, no estilo, no mundo que escolheram. Ambas grávidas de oito meses. Duas silhuetas que abrigam destinos em rota de colisão.

Stella veste preto, usa óculos escuros e brincos discretos de diamante. Cruza as pernas com a segurança de quem domina o jogo. Acende um cigarro.

Márcia usa um vestido claro, cabelo preso num coque solto, expressão cansada, mas doce. Bebe água com gás e observa a irmã com certa inquietação.

MÁRCIA - (sincera, mas firme) Você não devia fumar, Stella. Tá com oito meses. Isso é perigoso.

Stella sorri, traga devagar. Exala a fumaça com leveza, como se estivesse num filme francês.

STELLA - As mulheres sempre têm que abrir mão dos prazeres. Pelo bem-estar de alguém. (olha o cigarro, filosófica) Se for menino, vai nascer com pulmão forte. Se for menina, vai aprender desde cedo a respirar fundo.

MÁRCIA - (cansada) A mamãe está me deixando louca. Ela vive me confrontando. Todo dia uma insinuação diferente sobre o Giuseppe...

STELLA - (rindo com deboche leve) Nesse ponto ela não tá errada. (traga outra vez, depois encara a irmã) Você se deu ao luxo de ignorar todos os bons pretendentes da Zona Sul. A gente tinha o Rio aos nossos pés.
E você escolheu um escritor. (levanta a sobrancelha) Com sorte, vai ser indicado ao Jabuti. E olhe lá.

MÁRCIA - (tensa, muda de posição na cadeira) Você fala como se amar alguém fosse uma escolha errada.

STELLA - (irônica, apoiando o braço na mesa) Depende do amor. E principalmente do alguém.(pausa) Eu escolhi um homem que pode me dar poder. Influência. Que pode mudar leis se eu quiser. Você escolheu um cara que sabe conjugar “amar” no pretérito imperfeito.

Márcia se remexe na cadeira. O incômodo é visível. A vergonha também.

Stella a observa por um segundo. Depois suaviza — só um pouco.

STELLA -  (CONT.) Agora que você tá grávida. Vai ter que aguentar as consequências das suas escolhas. Igualzinho a mim. (sorri com cinismo) Só que eu fiz as escolhas certas.

Márcia engole seco. Não responde.

A câmera se afasta lentamente, revelando as duas: gêmeas à mesa, tão próximas na carne — e tão distantes na alma.

Ao fundo, o mar continua. Intocado. Imparcial.

CORTE PARA:

 

CENA 4 – EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS. ESCRITÓRIO. INT. DIA

O escritório é sóbrio, iluminado por uma luz fria que corta o ambiente como uma lâmina. Livros alinham-se nas prateleiras, testemunhas silenciosas de verdades esquecidas e histórias silenciadas.

Giuseppe segura o manuscrito com os dedos firmes, os olhos fixos no Editor, um homem na casa dos cinquenta, elegante, mas com uma sombra de desdém por trás do sorriso.

GIUSEPPE - (com um misto de esperança e desafio) O que achou do texto?

EDITOR - (sorri, um sorriso que mal esconde o sarcasmo) Um livro bom mexe com gente ruim. E um romance sobre Amelinha — mulher rica que perdeu um filho na ditadura e luta por justiça — sempre incomoda quem mais parece abominar o passado. (pausa, ajeitando os óculos) Mas é excelente.

GIUSEPPE - (aliviado, quase um sussurro) Então, vai ser publicado?

EDITOR - Sem dúvida. O manuscrito já está na revisão. Quando acabar, mando uma cópia para minha amiga, Maria Adelaide Amaral. Roteirista afiada, vive atrás de histórias que incomodam a alma e agitam a TV.

GIUSEPPE - (sorriso contido) Uma minissérie...

EDITOR - (interrompendo, com ironia fina) Na Lacre TV. Pode apostar. (olha direto nos olhos de Giuseppe) E tem mais. Vou depositar 200 mil dólares na sua conta como adiantamento. Você terá participação nos lucros, claro.

Eles apertam as mãos, o gesto é firme, mas pesado, cheio de promessas e ameaças veladas.

GIUSEPPE - (grato, mas já sentindo o peso) Obrigado. Não vou decepcionar.

EDITOR - (com um olhar que pesa como chumbo) Um livro assim não é só literatura é um risco calculado.

A câmera fecha na mão firme do aperto, enquanto o silêncio envolve a cena, cheio de ecos do passado e presságios do presente.

CORTA PARA:

 

CENA 5 – APARTAMENTO DE MÁRCIA E GIUSEPPE. SALA DE ESTAR. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “ABRÁZAME ASÍ” – ROBERTO CARLOS

 

O apartamento no Leblon é modesto, porém cuidadosamente arrumado — um refúgio de simplicidade em meio a sonhos maiores. Livros amontoados, plantas que tentam resistir ao tempo e uma luz tímida filtrada pela janela. Tudo sugere esperança, mas também o peso da realidade.

Giuseppe abre uma garrafa de espumante sem álcool. O som do pop reverbera breve, como um pequeno gesto de vitória contra o mundo.

MÁRCIA - (surpresa, quase desconfiada, como se esperasse uma armadilha) O que estamos comemorando?

GIUSEPPE - (sorriso contido, olhos que brilham com alívio e desafio) O fim das provocações da sua mãe. E do silêncio que ela tentava impor sobre nós.

Ele se aproxima, toca a mão dela com firmeza, mas com uma doçura que não costuma mostrar.

MÁRCIA - (arqueia a sobrancelha, preparando-se para a próxima investida) Sério? E qual a surpresa?

GIUSEPPE - (mais seguro, quase sorrindo) Os Fantoches vai ser publicado.

O rosto de Márcia se ilumina, mas a alegria vem acompanhada de uma sombra de medo — um rápido suspiro que ela tenta esconder. Ela o abraça, pula de alegria, mas seus dedos tremem levemente ao redor do braço dele.

MÁRCIA - (entre risos nervosos, quase tentando se convencer)
Finalmente. O dia em que terão que engolir as palavras... ou pelo menos tentar.

Giuseppe segura a mão dela firme, olhando profundamente, tentando transmitir força e segurança.

GIUSEPPE - (com convicção, mas a voz baixa, revelando uma ponta de apreensão) E o melhor: o adiantamento vai entrar na conta. Finalmente possamos ter um lugar só nosso.

Márcia respira fundo, segurando o olhar dele, como se encontrasse ali sua âncora. Seus olhos brilham, mas carregam uma dúvida silenciosa.

MÁRCIA - (sussurrando, quase para si) Esperei tanto por isso, não só pela casa, mas pelo que essa conquista representa

Pausa. Eles se olham — olhos que falam mais que palavras.

GIUSEPPE - (baixando o tom, tentando tranquilizá-la) Sei que o mundo pesa contra a gente. Que a opinião dos outros ainda machuca. Mas eu tô aqui. Você não tá sozinha.

Márcia fecha os olhos por um segundo, tomando força.

MÁRCIA - (firme, mas com voz trêmula) Você é meu porto seguro. Não importa o que digam, quem olhe torto, quem tente nos diminuir.

Giuseppe sorri — aquele sorriso que mistura desafio e ternura.

Eles se abraçam. A câmera se afasta lentamente, captando seu reflexo na janela, onde a cidade segue impassível, indiferente — o palco onde o jogo continuará.

CORTA PARA:

 



CENA 6 – RIO DE JANEIRO. EXT. ANOITECER


SONOPLASTIA – “QUERIDA” – DANILO CAYMMI

 

O sol se despede da cidade com a lentidão cerimonial dos grandes espetáculos. O céu do Rio de Janeiro, em pleno ano 2000, se derrama em tons de dourado, vinho e lilás. A cidade parece suspensa entre o passado e o que ainda não aconteceu. As primeiras luzes se acendem com hesitação, como se tentassem esconder, sob claridade artificial, os destroços invisíveis de uma elegância em extinção.

O trânsito desacelera nas avenidas da Zona Sul. A orla agora é feita de passos apressados, corredores solitários, casais que não se falam. Um ônibus passa rangendo pela Glória, enquanto o letreiro do Copacabana Palace se acende como um pacto com o tempo.

No coração do centro, o Theatro Municipal resplandece sob os refletores. A fachada neoclássica, esculpida entre mármores, vidros e delírios da Belle Époque, domina a Praça Floriano como uma relíquia viva. As escadarias ganham vida com o desfile dos que acreditam, ou fingem acreditar, que o Rio ainda é um baile.

O burburinho é contido e elegante. Sorrisos calculados, beijos no ar, flashes tímidos de câmeras analógicas. Há vestidos longos, estolas herdadas, ternos emprestados e presenças ensaiadas.

Um carro preto e silencioso encosta. O motorista desce e abre a porta traseira com a reverência que o momento exige.

Stella surge primeiro. Um vestido preto, justo e sem alças, esculpe seu corpo com a precisão de uma estátua moderna. O coque preso milimetricamente parece desafiar qualquer vento ou fragilidade. Ela pisa no mármore com a firmeza de quem sabe que o mundo é uma plateia — e ela, o espetáculo.

Atrás dela, Consuelo. Vestida de cinza-chumbo, com um xale quase transparente apoiado nos ombros retos. Não há brilho, mas tudo impõe. Ela não precisa chamar atenção — ela a atrai como uma sentença.

Stella olha para o alto da escadaria, onde jornalistas disputam cliques com curiosos. Seu olhar é controlado, sua expressão, ilegível. Consuelo detém o passo por um segundo e lê o cartaz da noite: uma ópera pouco montada, elegante o suficiente para afastar turistas. Ela ergue uma sobrancelha — não se sabe se por reconhecimento... ou desprezo.

As duas sobem. Sem pressa. Sabem que estão sendo vistas.

A câmera as acompanha, depois se afasta lentamente. O Theatro Municipal cresce no quadro, iluminado contra a noite que chega com a lentidão de um segredo mal contado.

A música de Danilo Caymmi atinge seu refrão.

O Rio se curva. Mas finge não sentir.

CORTA PARA:

 

CENA 7 – THEATRO MUNICIPAL. HALL. INT. NOITE

 

O saguão do Theatro Municipal pulsa sob os candelabros antigos. Colunas imponentes, espelhos antigos, tapetes vermelhos: um Brasil que tenta parecer europeu — e quase convence.

Homens de terno Armani, mulheres de vestido assinado, colares de pérola e sorrisos falsos. A elite cultural carioca — ou o que restou dela — em sua noite de gala.

Stella e Consuelo caminham lentamente entre os convidados. Dois ícones de presença: uma, a juventude afiada; a outra, o poder estabelecido. Juntas, são uma ameaça.

CONSUELO - (olhando disfarçadamente para os lados) Eriberto vem?

STELLA - (não esconde a irritação) Desde cedo não atende. Pager desligado. Celular na caixa. Nem sinal de fumaça.

CONSUELO - (impassível, como quem já esperava) Cuidado, Stella. Filho segura pensão. Não segura casamento. E muito menos um candidato. (pausa, crava os olhos) Você é estratégica pra imagem. Mas não é insubstituível.

STELLA - (pausa, vira-se de frente, firme) Não existem muitas mulheres como eu.

CONSUELO - (sorri com ternura falsa) Ainda bem. Mas Laurinha também é rara. E agora está viúva.

STELLA - (com veneno doce) Viúva de um bandido que lavava dinheiro em whisky 12 anos. Morreu no helicóptero dela. Com três investigações abertas — e dois Rolex falsos no pulso. (ri, seca) E ainda posa pra “Fama” como se fosse Gisele na capa da "Caras".

CONSUELO - (aproxima-se, baixa o tom) Ela pode não ser primeira-dama. Mas é bilionária. E dinheiro, querida é como Chanel nº5.
Você sente antes mesmo de saber de onde vem.

STELLA - (sorri, cruel) Só se for Chanel falsificada de free shop em Punta del Este.

CONSUELO - (com frieza cortante) Você sabe que eu prefiro você. Mas se quiser continuar sendo a senhora Albuquerque Mendonza. Vai ter que tirar Laurinha do jogo. Com elegância. Não com ciúme.

Um casal elegante passa. Cumprimentos, dois beijos, elogios forçados.

Stella finge sorrir, mas seus olhos seguem escuros.

STELLA - (baixa, entredentes) Ela nunca vai ser mais do que um corpo bonito e um extrato bancário.

CONSUELO - (calmamente) Às vezes é o suficiente.

As duas seguem em direção a nobre frisa. Os saltos ecoam no mármore como pequenas bombas prestes a explodir.

CORTE PARA.

 

CENA 8 – THEATRO MUNICIPAL. FRISA DE STELLA. INT. NOITE

 

A plateia se aquieta. Nessun Dorma começa a ecoar, potente e dramática, preenchendo o espaço entre luzes baixas e murmúrios contidos.

No camarote, Stella e Consuelo acomodam-se em poltronas de veludo. As mãos de Consuelo repousam com firmeza sobre o braço da cadeira, dedos entrelaçados, como quem segura segredos — ou ameaças veladas. Stella, com o cigarro pendurado nos dedos, traça círculos lentos na borda da taça de champagne.

STELLA - (com um sorriso frio, os olhos deslizam até o outro lado do salão) Olha lá, Zilda Maria, como sempre. Impecável, inflexível.
Segue o mesmo padrão que a senhora, minha sogra.

Seus dedos tocam a borda da taça, quase nervosos, mas o sorriso permanece impenetrável.

CONSUELO - (sorri com um leve arqueamento de sobrancelha, os olhos fixos na figura de Zilda Maria) Zilda sobreviveu a tudo — ditaduras, mudanças de partido, CPIs. Sabe navegar nos rios mais turvos,
e sem fazer barulho.

Ela solta lentamente o ar, soltando os dedos do braço da cadeira e ajeitando o xale no ombro com elegância calculada.

STELLA - (levanta uma sobrancelha, traça um leve movimento com o dedo indicador no vidro da taça) Se ela gosta tanto de ópera, podia ser contra-regra. Mais fácil, menos arriscado.

CONSUELO - (fixa o olhar em Stella, voz baixa e firme) Não menos perigoso. Quem parece peça de museu, muitas vezes é o que mantém o tabuleiro em movimento.

Consuelo cruza as pernas lentamente, a ponta do sapato tocando o chão num ritmo que parece uma contagem silenciosa.

STELLA - (com um sorriso quase imperceptível, um olhar desafiante) Então, ela é uma aliada?

CONSUELO - (com um leve inclinar de cabeça, os dedos entrelaçados novamente) Ou a inimiga mais silenciosa que você pode ter. Num ano pré-eleitoral, quem frequenta camarotes assim tem mais influência do que imagina.

A câmera desliza para a frisa onde Zilda Maria está. Ela, imponente, recebe Laurinha com um beijo no rosto que é quase um comando. As mãos delas se entrelaçam por um instante — não há amizade, há estratégia.

Consuelo nota primeiro, seus olhos estreitam-se por um segundo. Stella acompanha o gesto, mordendo o lábio inferior.

Um silêncio quase palpável.

Eriberto chega apressado, terno escuro impecável, gravata levemente desalinhada. Sua mão direita ajeita o relógio enquanto os olhos buscam Stella e Consuelo.

ERIBERTO - (voz baixa, um sorriso tenso) Desculpem o atraso.
A reunião se estendeu mais do que o esperado.

STELLA e CONSUELO trocam um breve olhar — um diálogo mudo que fala de planos e alertas.

STELLA solta o ar pela boca, traçando um leve movimento com os dedos, fingindo tranquilidade.

CONSUELO levanta a taça, o toque do cristal ressoa suave, uma ameaça velada.

ERIBERTO senta-se ao lado de STELLA, que inclina-se um pouco para ele, olhos frios.

STELLA - (sorriso cortante) Claro. Reunião importante.

A voz de Pavarotti ressoa no fundo, enquanto a câmera se afasta, capturando os camarotes opostos:
de Stella e Consuelo, e de Zilda Maria e Laurinha — dois tabuleiros, dois jogos, uma só música.

CORTE PARA.

 

CENA 9.  THEATRO MUNICIPAL. PALCO. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA: “NESSUN DORMA” – PUCCINI (AO VIVO)

A ópera ecoa pelo Theatro Municipal como um réquiem de vaidades.
“Vincerò” suspira Turandot no palco, como um juramento silencioso de poder.

O palco brilha em tons de ouro e gelo. A orquestra vibra.
Lá em cima, nas frisas, o verdadeiro espetáculo acontece em silêncio.

 

FRISA DE STELLA, CONSUELO E ERIBERTO

Stella está de pé. Olha para o outro lado do teatro com a precisão de uma arma.

Consuelo, sentada, ergue os olhos lentamente, sem mover o resto do corpo. Seu leque pousado no colo, abandonado — ela sabe que o embate está acontecendo fora do palco.

Eriberto está entre elas. De terno escuro, mãos cruzadas, olhar fixo no palco — ou fingindo que está. Seu maxilar contraído revela mais do que qualquer frase. Sabe o que vem a seguir. E sabe que não poderá impedir.

 

CÂMERA REVELA A FRISA DE ZILDA MARIA

Zilda Maria está sentada como uma rainha de porcelana.
Postura impecável. Sem ornamentos. Apenas poder.

Ao seu lado, Laurinha. Sorriso no rosto, olhos ligeiramente semicerrados. Ela sussurra algo no ouvido de Zilda e ri baixinho. Uma mulher que não pede permissão para ocupar espaço. Ela então se levanta com graça felina.
O vestido preto acompanha o movimento com sensualidade estudada.
Ela se vira de lado, exibe o perfil — sabe que está sendo observada.

 

Stella reage. Stella também se levanta.
Não por impulso — por estratégia.

A câmera foca em suas mãos: apertam a bolsa com força.
Mas o rosto permanece calmo, impassível.
Como se dissesse: “o jogo só começou.”

Consuelo não olha. Apenas movimenta o leque com leveza.
Um gesto quase teatral — para ventilar a tensão.

 

Foco em Eriberto. Ele sente. Sabe que as duas frisas se enfrentam.
Sabe o que representa ver Laurinha ao lado de Zilda Maria —
e o que significa Stella se levantar diante de todos.

Ele vira-se para Stella. Ela não o olha.

ERIBERTO - (sussurra, incômodo)Por favor, senta. Isso aqui não é palanque.

STELLA - (sussurra de volta, sem olhar) Não. Mas tem plateia. E eu nunca fui figurante.

 

CÂMERA ENTRE AS FRISAS

Laurinha, de pé na frisa de Zilda.
Stella, de pé na frisa de Consuelo.

As duas se encaram. Não sorriem. Não acenam. Não piscam.

Consuelo levanta os olhos, finalmente. Vê tudo. Registra tudo.
Cruza as pernas lentamente.

CONSUELO - (baixa, elegante, venenosa) Laurinha não veio assistir Turandot. Veio anunciar que tem lugar. E que não vai sair sem fazer barulho.

Stella permanece imóvel. Mas por dentro, ferve.

CORTA PARA:

CENA 10 – THEATRO MUNICIPAL. BANHEIRO FEMININO. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA AO FUNDO — OS ACORDES FINAIS DA ÓPERA AINDA ECOAM, ABAFADOS PELAS PORTAS PESADAS.

 

O banheiro feminino é luxuoso: mármore branco, espelhos bisotados, iluminação quente. O som da água corrente é o único ruído.

Laurinha lava as mãos, com movimentos suaves, quase coreografados.
Perfume caro no ar. Vestido preto com decote profundo.
Ela sabe que está linda — e sabe que está sendo vista.

A porta se abre.

Stella entra. Grávida. Fatal. Vestido preto justo, salto alto, olhar como navalha. Fecha a porta com um leve estalo — a pontuação de quem veio para o confronto. As duas se olham pelo reflexo do espelho.

LAURINHA - (sorri com doçura ácida) Gostou do espetáculo?

STELLA - (gela o ar com um meio sorriso) Muito. Mas prefiro aquele que vou protagonizar quando for Primeira-Dama da República.

Laurinha desliga a torneira. Pega uma toalha de linho.
Seca as mãos com calma. O silêncio estica.

LAURINHA - (suave, venenosa) Isso só se eu continuar bancando as campanhas do Eriberto. É assim que se chega à presidência. Com cheque — não com útero.

STELLA - (se aproxima, altiva) Doadores vêm e vão. Amantes também.
Mas esposas assinam documentos.

LAURINHA - (vira-se, encara Stella com frieza doce) E filhos ficam. (pausa — ela finge hesitação, mas solta com precisão cirúrgica) Ele nunca te contou?

Stella franze o cenho. Um leve desconforto. Laurinha sente.

LAURINHA - (fatal) O sobrenome deles é Mendoza. Mas o sangue é do Eriberto. (pausa dramática — a lâmina vem com doçura) Ele é pai dos meus dois filhos, Stella.

O tempo para. Stella empalidece. A mão toca instintivamente a barriga.
Ela tenta disfarçar o impacto — mas os olhos traem.

Laurinha dá um passo à frente.
Quase sussurra, com ternura falsa:

LAURINHA - Acha mesmo que ele vai te escolher? Ele já escolheu. Duas vezes.

Pausa. Stella tenta reagir, mas só consegue encará-la.
A guerra agora é íntima. Sangue por sangue.

CORTE PARA:

 

FIM

 

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