A OUTRA

CAPÍTULO 3

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1, THEATRO MUNICIPAL. BANHEIRO FEMININO. INT. NOITE 

 

SONOPLASTIA AO FUNDO — OS ACORDES FINAIS DA ÓPERA AINDA ECOAM, COMO SE O PRÓPRIO TEATRO ESTIVESSE PRENDENDO A RESPIRAÇÃO.

Stella tenta reagir, mas só consegue encará-la.
A guerra agora é íntima. Sangue por sangue.

LAURINHA - (suave, como quem afaga uma ferida) Você não sabia, né? Ele nunca contou. Nem pra você, nem pra ninguém. Mas é verdade.(uma pausa breve, quase maternal)O sobrenome deles é Mendoza.Mas o sangue (pausa milimétrica) é todo dele.

STELLA - (fixa o olhar, sem piscar) Você mente bem.

LAURINHA - (sorri, doce como veneno) Pior que não. Só omito. Até que se torne útil. E essa(aproxima-se, um passo, afunda o tom) é a hora certa.

Stella dá um passo para trás. Seu salto ecoa no mármore como um estalo de nervo exposto. Mas não é medo — é cálculo. Ela inspira. Gira lentamente para o espelho.

Reflexo: Stella à frente, Laurinha atrás. Duas versões da mesma ambição. A oficial e a clandestina. A esposa e a mãe fora do álbum de família.

STELLA - (olhos no espelho, tom firme) Você devia saber que não se ameaça uma mulher grávida. Ainda mais uma que tem algo a perder. (pausa — um silêncio que gela) Porque aí, Laurinha,ela aprende a matar sorrindo.

LAURINHA - (ri, num sopro quase triste) Você não me assusta, Stella.

STELLA - (vira-se com precisão — uma bailarina da guerra) Não ainda.

As duas se encaram. O tempo estica como um fio prestes a romper. Stella respira. Ajusta o vestido com um gesto firme. Recupera a pose. Caminha até a porta, sem pressa. Cada passo é um aviso.

Ao chegar à saída, sem olhar para trás:

STELLA - A diferença entre nós é que eu vou ser primeira-dama. E você vai continuar pagando a cadeira.

Ela sai. A porta fecha com um estalo seco — a pontuação final de um capítulo escrito com sangue frio.

Close em Laurinha. Sozinha. O sorriso ainda está nos lábios. Mas vacila. O espelho a devolve um pouco menor. Um pouco mais pálida.

Ela dá um passo em direção ao lavatório. Passa batom de novo. A mão treme — só por um segundo. Depois sorri. Mas não é mais o mesmo sorriso.

CORTE PARA:

 

CENA 2, ESCADARIA DO THEATRO MUNICIPAL. EXT. NOITE

 

SONOPLASTIA – “CANÇÃO DO MAR” – DULCE PONTES

A fachada iluminada do Theatro Municipal parece flutuar sob a noite úmida. A praça pulsa de vozes baixas, carros importados, perfumes caros e sorrisos que não chegam aos olhos. Tudo é aparência. E Stella sabe jogar.

Ela desce sozinha. Passo a passo. O salto agulha reverbera no mármore como um coração que endureceu.

Stella, grávida, impecável, inabalável — ou pelo menos fingindo.
A maquiagem continua intacta. O coque preso com precisão cirúrgica.
Mas há uma rachadura no olhar.
Algo que nem a alta-costura consegue esconder.

À sua volta, gente elegante e vazia flutua em conversas sem conteúdo.
É a elite carioca em sua mais pura encenação: ruído e verniz.
Flashs pipocam. Um zumbido de vozes. Um repórter fura a barreira.

REPÓRTER - Dona Stella! Uma palavra?

STELLA - (não para de andar; sorri com os olhos, não com a alma) Sobre a ópera? (pausa breve, lâmina afiada na voz) Turandot sempre me emociona.
Sobretudo quando o príncipe entende que subestimar uma mulher pode custar a cabeça.

Flash.silêncio. Ela entra sozinha no carro preto blindado, que espera discretamente no meio-fio. Um motorista a abre e fecha a porta com reverência — não ousa falar. Luxo seco, contido. Nada grita — tudo pesa.

Dentro do carro O silêncio é tumular. Só o som abafado da rua. E a música distante, melancólica.

Stella tira os brincos com calma. Um a um.
Como se fossem armas depois de uma guerra.

A respiração finalmente foge do controle. Ela fecha os olhos. Uma lágrima escapa, lenta, solitária. Como ela.

STELLA - (sussurra para si mesma) Duas vezes (pausa. repete, mais baixa, mais amarga)Duas vezes

A câmera permanece parada por um segundo. O carro parte. A cidade segue seu teatro.

CORTE PARA:

CENA 3 – THEATRO MUNICIPAL. HALL DE ENTRADA. INT. NOITE

O salão pulsa entre ecos de passos sobre mármore frio, o tilintar agudo de braceletes e colares, e suspiros abafados que escapam entre as paredes carregadas de história. O ar é denso, carregado de perfume caro, segredos e olhares que cortam como navalha.

Consuelo está no epicentro da roda, corpo ereto, voz firme e cheia de nuances. O sorriso dela é uma linha tênue entre ironia e autoridade.

MULHER 1 - (com voz doce e falsa como cetim) Tenho pena dos humildes. Se o governo mexer nas contas lá fora, esses 200, 300 mil dólares vão fazer falta. Vai ser uma dor de cabeça pra quem vive no limite.

HOMEM 1 - (com um riso seco) Rico? Conta nominal? Só em nome de empresas, offshores invisíveis. Os que têm poder, riem da tempestade.

MULHER 2 - (com um suspiro) Desde Collor não via isso — esse novo milênio veio pra sacudir geral.

Um silêncio se instala, denso.

CONSUELO - (ergue uma sobrancelha, com um meio sorriso sarcástico) Pena? Não tenham pena dos humildes. Eles é que têm que se mexer — porque nessa vida, meus amores, desigualdade é regra, não exceção. (olha direto, incisiva) Desde Adão e Eva até hoje, o jogo é bruto —ou você é caçador ou é caça. (suaviza, quase como quem conta um segredo) Olha os japoneses depois da 2ª Guerra? Eles não ficaram esperando esmola. Correram atrás, suaram a camisa. É assim que se sobrevive.

Ela faz um gesto leve, mexendo o xale com elegância quase desdenhosa.

O grupo ri contido, nervoso.

Consuelo se ergue com a imponência de quem carrega a casa nas costas.

CONSUELO - (voz firme, cortante) Com licença, preciso ver Eriberto.

Ela atravessa o salão, passos firmes e decididos, que ecoam no mármore como sentenças.

Eriberto está encostado, tenso, telefone tijolão na mão, discando sem sucesso.

CONSUELO - (sorriso seco, quase zombeteiro) E aí? Já descobriu em que constelação a estrela está?

ERIBERTO - (frustrado) Nem sinal. Pager desligado, celular muda.
Parece que resolveu desaparecer do mapa.

Consuelo inclina a cabeça, olhos brilhando de um prazer contido.

CONSUELO - (séria) Ela sempre tem o dom de desaparecer quando a pressão aumenta. Mas a gente não tem tempo pra brincar de esconde-esconde. Vamos embora antes que esse teatro vire circo.

Zilda Maria ergue lentamente a taça, o olhar cravado em Laurinha. Por um instante, suas mãos se encontram num aperto breve — firme, quase desafiador, como um pacto silencioso.
Laurinha responde com um sorriso de escárnio que não alcança os olhos, uma expressão que mistura desprezo e aviso. Ela murmura algo quase inaudível, uma sentença sussurrada que só Zilda capta — o prenúncio de uma guerra sem tréguas.

Os dois rostos permanecem fixos um no outro, como faróis em tempestade, enquanto ao redor o murmúrio da festa parece se apagar.

CORTA PARA:

 

CENA 4 – APARTAMENTO DE BRUNO. SUÍTE. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – “DOIS PRA LÁ, DOIS PRA CÁ” – ELIS REGINA.


A voz da cantora parece vir de longe, como se o tempo tivesse sido desacelerado. O chiado suave da gravação se mistura à respiração de dois corpos exaustos.

A luz é difusa, dourada, cortando o ambiente em sombras e silhuetas. A suíte tem elegância discreta — móveis de design italiano, tapetes orientais, obras de arte contemporânea, mas nada que grite riqueza. Tudo é desejo e silêncio bem decorado.

Na cama, Stella e Bruno. Os lençóis de linho branco estão revirados como se denunciassem um furacão. O abajur lança uma penumbra quente sobre seus corpos.
Ela,
 grávida, com a pele ainda úmida de suor e prazer. Ele, apoiado sobre um dos cotovelos, a observa — meio pasmo, meio rendido.

BRUNO - (rindo, entre o deboche e a admiração) Hoje você foi outra. Brava. Voraz. Tem alguma coisa te mordendo.

STELLA - (encara o teto, exausta) Laurinha.

BRUNO - (rola na cama, deita de lado, curioso) O que foi agora? Ela voltou a posar nua na Fama?

STELLA - (dura) Disse que o Eriberto é pai dos filhos dela.

Silêncio. A câmera passeia lentamente pelo quarto. Um cinzeiro com um batom vermelho apagado. Uma taça de vinho pela metade. O som da cidade lá embaixo — abafado.

BRUNO - Ah, pelo amor de Deus, Stella. Achei que mentiras de paternidade fossem uma tática comum do seu (sete aspas no tom) universo.

STELLA - (ereta, olha para ele com frieza) Esse aqui é seu.Por conveniência, sim. Mas é estratégia. Laurinha é outra história.

BRUNO - (irônico) Ah, claro. Seus bastardos incomodam. Os dela, ameaçam.

STELLA - (sem sorrir) Exatamente.

BRUNO -(ciumento, baixa) Você diz que só gosta do poder do Eriberto. Mas fala dele como quem ainda ama.

STELLA - (seca, direta) Eu amo é você, idiota. Mas o Eriberto pode me dar o que você não tem: Título. Trono. Tribuna. (pausa, vira-se para ele, sem suavidade) Laurinha pode tirar isso de mim. Você, não.

BRUNO - (aproxima-se, sussurrando) Mas eu posso tirar outras coisas. Como sua calma. Seu juízo. (ele a beija no ombro) E se você quiser os incômodos.

Stella o segura pela nuca. Ele se inclina para o beijo, mas ela trava o gesto no ar, milimetricamente. O jogo de poder ainda não acabou. A luz projeta as duas silhuetas contra a parede.

STELLA - (baixo, ameaçador e sensual) Cuidado. Eu também sei calar quem me agrada. (pausa — e aí o beija, feroz)

CORTA PARA:

 


CENA 5 – APARTAMENTO DE CELESTE. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – UM JAZZ INSTRUMENTAL SUTIL PREENCHE O AR COMO UM PERFUME VELHO. VEM DE UM RÁDIO VINTAGE, ESCONDIDO EM UMA ESTANTE. MÚSICA DE FUNDO PARA QUEM FINGE NÃO OUVIR NADA.

 

A sala tem tudo o que Celeste imagina ser “bom gosto”: cortinas pesadas em tom bege, abajures dourados com franjas, almofadas combinando com as flores artificiais. Um quadro de mulher nua em traço impressionista paira na parede — comprado a prazo na década de 80. O ambiente sufoca com elegância. E com ego.

Celeste, impecável como sempre, surge com um bule de prata reluzente. Não há afeto no gesto, só protocolo. Sua expressão é de quem espera ser agradecida antes mesmo do café ser servido.

No sofá, Giuseppe e Márcia estão juntos, mas não relaxados. Há uma tensão suspensa no ar — como se a qualquer momento o teto pudesse cair. Mas cair com classe.

CELESTE - (entrega as xícaras com frieza disfarçada de cortesia) Pronto. Café servido. Agora, por favor, me digam o que é tão importante que me fez perder de acompanhar Stella no Municipal?

MÁRCIA - (sorrindo, tentando manter o tom leve) É que o Giuseppe acabou de vender os direitos do livro. Recebeu o adiantamento em dólares.

GIUSEPPE - (firme) Vamos comprar nosso apartamento. Finalmente sair daqui, Celeste.

CELESTE - (bebe um gole de café, depois pousa a xícara com lentidão e desprezo) Quer dizer que eu saí de casa — arrumada, perfumada, com convite na primeira fila — pra ouvir isso? Que você vai ganhar uns dolarzinhos?

O som do café sendo pousado na bandeja ecoa mais alto do que deveria.

GIUSEPPE - (irritado) É sempre isso. A senhora me trata como se eu fosse (inclina-se, tenso) um acidente de percurso. Só porque não sou o genro que a senhora sonhou.

CELESTE - (sorri com veneno doce) Por ser o pesadelo, eu tive que acordar. Agora baixa a bola, Giuseppe. Escritor, sim. Mas sem leitores ainda.

GIUSEPPE - (com dor contida) A senhora é uma classe média que se acha milionária. Seu único trunfo foi parir duas filhas bonitas. Uma escolheu ser feliz. A outra escolheu a senhora.

CELESTE - (ereta, sem piscar) Eu tenho orgulho da Stella. Ambiciosa, pragmática. Você pode chamar de interesse. Eu chamo de visão.

MÁRCIA - (sem conseguir mais conter) E de mim? Sente o quê?

CELESTE - (um suspiro entediado) Pena.

MÁRCIA - (a raiva cresce com suavidade) Claro. Pena de quem não se dobra. Pena de quem carrega um filho no ventre e (sorri triste) não serve nem de vitrine pra senhora.

GIUSEPPE - (tenta conter Márcia com a mão no ombro) Márcia...

MÁRCIA - (não recua) Tudo te faz mal, mãe. Principalmente o que não brilha.

CELESTE - (ergue o queixo, debochada) O que me faz mal é saber o que as colunas sociais pensam. E sabe o que elas pensam de você? Que foi uma tonta.

Pausa. O relógio de parede faz seu tic-tac persistente. O tempo ali dentro não é tempo — é sentença.

Márcia se levanta. Seu corpo está calmo, mas os olhos não. Atravessa o espaço entre elas. Tapa.Seco. Preciso. Sem grito. Sem drama — só precisão cirúrgica.

Celeste leva a mão ao rosto — mais por espanto do que por dor.
Como quem sente o colapso do pedestal.

MÁRCIA - (baixa, firme) A gente vai embora. Agora.

Giuseppe levanta junto, em silêncio. Não é fuga. É retaliação discreta.

CELESTE - (ruborizada de fúria, sussurra entre os dentes) Podem ir. Mas lembrem-se: esse apartamento que moram é meu. Emprestado por mim.

MÁRCIA - (se volta, sem medo) E se me expulsar a gente entra com inventário. Resolve a herança do papai. Aquela parte que você sempre fingiu que era só sua.

Celeste trinca os dentes. A boca treme, mas ela não entrega o vexame. A câmera se aproxima do rosto dela. Um campo minado de vaidade, humilhação e medo.

Por trás da maquiagem e do robe caro, há uma mulher encurralada — e prestes a morder.

CORTE PARA:

 

CENA 6. BAR DO COPACABANA PALACE. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – “STATE OF THE HEART” – WEST END GIRLS - VERSÃO AMBIENTE

 

O bar brilha em dourado e cristal. Luzes baixas, garçons silenciosos, taças tilintando com arrogância. Um desfile de rostos conhecidos da elite carioca — muitos dos que estavam no Municipal — agora refazem alianças com champanhe e intrigas bem dosadas.

Laurinha está numa das poltronas de veludo, encostada com a displicência estudada de quem sabe o poder da própria imagem. Veste um tubinho preto Chanel, óculos escuros enormes, cabelos impecáveis. Bebe um Bellini com o mesmo cuidado com que afaga a própria reputação.

Sobre a mesinha de mármore, uma coluna social com seu nome em destaque. Ao lado, uma foto emoldurada: seus dois filhos. Um sorri, o outro parece distante — ambos loiros, como pequenos troféus de um passado seletivo.

Zilda Maria surge. Postura firme, roupa sóbria de altíssimo padrão. Traz no olhar a frieza das viúvas que aprenderam a ganhar mesmo depois de perder.

Ela se senta ao lado de Laurinha, com intimidade medida — mas autoritária.

ZILDA - (para o garçom, sem desviar o olhar) Dry martini. Sem gelo. Sem pressa.

Pausa. Ela observa Laurinha por um segundo longo. Como quem mede uma peça antes de vestir.

ZILDA - (sem afeto, apenas cálculo) A primeira noite foi linda. Mas agora, minha querida, você precisa pensar como viúva. Viúvas ricas e bonitas não têm sossego. E isso pode ser uma vantagem (pausa) ou uma sentença.

LAURINHA - (sem tirar os óculos, tom lânguido e venenoso)
A Stella não vai desistir tão fácil.

ZILDA - (baixa o olhar, mexe no guardanapo de linho com elegância seca) É por isso que você precisa de um lugar seguro. E o lugar mais seguro é o poder.

LAURINHA - (sorri, cruel, com um toque de desprezo infantil) Eu não quero ser primeira-dama. Quero ser a história que a primeira-dama nunca vai conseguir apagar.

ZILDA - (sorri também, mas é o sorriso de quem controla o jogo) Então trate de ser inesquecível. Mas sem ser vulgar. (pausa sutil, voz mais baixa) Porque vulgar, Laurinha, até a pobreza sabe ser.

Close em Zilda, que bebe seu martini com a segurança de quem constrói impérios com o silêncio dos outros.

Close em Laurinha, que agora remove os óculos e revela os olhos marejados — não de dor, mas de ambição fermentando.

A câmera recua lentamente, revelando o ambiente: o bar fervilha em conversas discretas, cochichos com segredos de Estado, flertes poderosos, e alianças disfarçadas em brindes.
Laurinha e Zilda, porém, seguem no centro. Duas predadoras, de gerações diferentes — e o mesmo veneno.

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CENA 7 – COBERTURA DE ERIBERTO E STELLA. SUÍTE DO CASAL. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – UM SILÊNCIO QUE PESA. O SOM REMOTO DO TRÂNSITO NA ORLA. UM AVIÃO AO LONGE. O LEVE RUÍDO DE UM AR-CONDICIONADO CENTRAL.

 

A suíte é sofisticada, moderna, quase clínica. Cores frias. Mármore, espelhos e tecidos caros. Tudo parece saído de um catálogo internacional de bom gosto — exceto pelo vazio emocional que preenche o ambiente.

Eriberto, de camisa branca e mangas dobradas, termina de arrumar uma mala Louis Vuitton sobre o banco estofado do closet. Os gestos são metódicos, quase frios — um homem que dobra a própria camisa como dobra a verdade: com precisão e desdém.

Ele segura um celular tijolão próximo ao rosto, com a boca quase colada ao microfone. A voz é baixa. O sorriso é sujo.

ERIBERTO - (rindo, cúmplice, cínico) Quero dormir dentro da minha coelhinha hoje (pausa sussurrada) Mas você vai ter que esperar, amor...

porta se abre devagar.

STELLA entra. De salto, elegante, com o vestido levemente amarrotado. Os cabelos ainda presos com perfeição. A maquiagem intacta. O olhar — aquele olhar de quem já sabe de tudo, mas não entrega absolutamente nada.

Ela ouve. Tudo.

Eriberto, percebendo, gira o corpo e muda o tom imediatamente.
Desliga com discrição.

ERIBERTO - (seco, fingindo cansaço) Depois a gente se fala. Boa noite.

Ele guarda o telefone no bolso do paletó pendurado como quem esconde um crime.

Stella fecha a porta com um clique delicado.

ERIBERTO - (ensaiando a normalidade) Tá tudo bem? Você sumiu.

STELLA - (finge doçura, com um sorriso sem alma) Tive um mal-estar. Nada grave. Fui ver minha mãe. (uma pausa seca, cirúrgica) Coisas da gravidez ou da família. Nada que um bom banho quente não resolva.

ERIBERTO - (apressado, desfila pelo quarto pegando documentos) Eu preciso ir. Surgiu uma oportunidade com os doadores — Paraty, bem cedo.

Ele desaparece no banheiro, e logo se ouve o barulho do chuveiro. Água corrente — o som da mentira sendo lavada.

STELLA fica sozinha. Mas não parada.

Ela caminha com a leveza de quem nunca tropeça. Vai até o paletó pendurado. Saca o tijolão com um gesto calmo e treinado. Olha o visor. Pressiona SEND — o botão verde, que conecta diretamente ao último número discado.

O celular chama.

LAURINHA - (no viva-voz, íntima, disfarçadamente satisfeita): Gostoso, aconteceu alguma coisa?

STELLA desliga. Devagar. Sem hesitar.

Ela permanece imóvel por um segundo. Depois, ergue o rosto para o espelho da suíte.

O reflexo é o de uma mulher grávida — mas não vulnerável. É uma esfinge. A mão repousa sobre a barriga com firmeza, quase como quem guarda uma arma.

E então, sorri.

Não é um sorriso doce. É um gesto silencioso de quem acaba de arquitetar algo — e sabe que vai vencer.

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FIM

 

 

 

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