A OUTRA
CAPÍTULO 1
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1 – RIO DE JANEIRO. CLIPE VISUAL. DIA/NOITE
SONOPLASTIA — “RODA VIVA” – FRANCISCO, EL HOMBRE
EXT. ORLA DE COPACABANA – ENTARDECER
O mar reflete o sol poente, tingindo a água de dourado. O brilho quente se espalha pela areia. Um casal elegante brinda com champanhe em um quiosque de madeira branca. Luxo discreto, quase inatingível.
Vendedores ambulantes recolhem suas barracas, rostos queimados de sol. Um deles olha para a câmera — o olhar exausto de quem assiste ao privilégio sem tocá-lo.
A câmera sobe lentamente, revelando os prédios da orla. Fachadas antigas misturam-se a reformas modernas — o concreto desigual de uma cidade partida.
EXT. RUA DO LEBLON – FIM DE TARDE
Planos médios mostram vitrines de grife. Bolsas, joias, sapatos: objetos de desejo inatingíveis para a maioria. Mulheres caminham com saltos firmes, expressão dura.
Um outdoor do Plano Real brilha em azul e amarelo. Logo depois, um táxi preto com adesivo eleitoral passa — seguido por um cartaz de campanha de um político militarista.
A multidão caminha, sem se olhar. Todos fingem normalidade.
EXT. PRAÇA – RÁPIDO LEVANTAMENTO
Um pequeno grupo protesta em silêncio. Cartazes manchados de suor: “Mais Saúde, Menos Corrupção”, “Reforma da Previdência NÃO!”.
Policiais observam — impassíveis. Há tensão no ar, mas o confronto ainda não veio.
INT. BAR ELEGANTE – LEBLON – FIM DE TARDE
Luz baixa. Jazz instrumental ao fundo (a música dá espaço sutil). Mobiliário escuro, madeiras polidas. Empresários sussurram. Uísque nos copos.
Eriberto está de costas, isolado. Um close em seu copo: âmbar contra a luz.
Sua mão o segura firme. A presença é pesada. Silenciosa. Perigosa.
EXT. RESTAURANTE CHIQUE – LEBLON – NOITE
A fachada imponente do restaurante se ilumina. A porta de madeira maciça se abre, revelando figuras elegantes entrando e saindo.
Carros de luxo deslizam. Pedestres cruzam a calçada molhada pela chuva recente. O reflexo das luzes no asfalto transforma a rua num espelho noturno.
ERIBERTO - (OFF, VOZ GRAVE, CALCULISTA, SOBRE O REFRÃO FINAL DA CANÇÃO) Você acha que esse povo quer liberdade? Eles querem ar-condicionado no crediário e novela na hora certa.
A câmera sobe pelo prédio, revelando a lua crescente no céu limpo — símbolo do destino que gira, indiferente às vontades.
CORTA PARA:
CENA 2 – RESTAURANTE CHIQUE. LEBLON. INT. NOITE
Interior do restaurante. Climatizado. Luxuoso. O som da elite em repouso: talheres em porcelana, risos educados, jazz instrumental abafado por carpetes espessos.
Uma mesa redonda, discretamente isolada, recebe quatro pessoas. As taças já foram servidas, os pratos principais ainda não chegaram.
Eriberto, sóbrio, de terno azul petróleo, fala com a voz de quem jamais levanta o tom — porque sempre teve a palavra final. Está relaxado, mas vigia tudo.
Ao lado dele, Stella, grávida de oito meses, repousa a mão sobre o ventre com o cuidado de quem cultiva um legado. Veste um vestido de seda preta, de gola alta e mangas longas, e usa um batom vermelho opaco que denuncia controle e cálculo. Sorri pouco, mas quando sorri, alguém perde.
Capitão Neves, deputado do baixo clero, fala alto como se o mundo fosse quartel. Os modos são rústicos, mas ele está à vontade. No seu universo, ser bruto é ser sincero.
Consuelo, mãe de Eriberto, ostenta um Chanel rosa-pálido e a certeza de que nunca errou. Fala com frieza, mas não há frieza em seus olhos: há julgamento constante, sobretudo sobre Stella.
CAPITÃO NEVES - (ri com gosto, como quem vê confirmação divina) E segurança. Muita segurança. Pra mim, bandido bom já nasce morto. Ou castrado — se for reincidente. (sorri, feliz da vida com a própria brutalidade)
STELLA - (tom suave, olhando o cardápio) Que horror, Capitão. E como o senhor sugere que se classifique um bandido aos sete anos? Pela redação do colégio?
CAPITÃO NEVES - (sem perceber a ironia) Na minha época, a gente sabia quem ia dar problema desde cedo. Era só olhar. Os sinais estão todos lá.
CONSUELO -(sorri sem mostrar os dentes) Claro. Porque quem nasce pobre já nasce criminoso em potencial, não é isso? Eu adoro esse raciocínio militar: direto, cruel e preguiçoso.
STELLA - (sem perder a doçura) Consuelo, não seja dura. O Capitão representa parte importante do eleitorado do meu marido. A parte que sente saudade do cassetete.
ERIBERTO - (satisfeito) A parte que vota. A outra assina abaixo-assinado e acredita em editorial.
CAPITÃO NEVES - (ergue o copo) A vocês. (pausa) E à futura primeira-dama.
STELLA - (baixa os olhos, gestos graciosos e letais) Eu nem doutorado tenho. Mal sei sorrir em bienal literária. Sou o oposto da Dona Rute.
CONSUELO - (sincera no veneno, irônica na entonação) Minha querida. Se brasileiro respeitasse inteligência, o país era a Suécia.
ERIBERTO - (dá um gole longo no uísque) O Brasil gosta de quem manda sem parecer que manda. (olha para Stella com aquele ar de posse travestido de carinho) Nesse ponto, você é perfeita.
STELLA - (tom baixo, glacial e doce) Espero que a perfeição não atrapalhe a obediência.
CONSUELO - (encostando a taça, com precisão cirúrgica) Não se preocupe. Obediência nunca atrapalhou uma boa ascensão. (sorri sem os olhos, como quem vaticina um destino)
O silêncio à mesa é confortável para eles. Um silêncio de gente que acha que já venceu.
A câmera se afasta lentamente, revelando outras mesas, casais em sussurros, garçons impassíveis.
A música ao fundo volta a ser instrumental.
A cidade lá fora continua girando. Mas ali dentro, o tempo é imóvel — como se o poder parasse o mundo.
CORTA PARA:
CENA 3. RESTAURANTE CHIQUE. LEBLON. FACHADA. EXT. NOITE
A fachada do restaurante está banhada por uma luz âmbar quente, quase dourada, que parece acariciar as pedras portuguesas da calçada molhada pela chuva recente. O asfalto negro brilha com reflexos distorcidos das luminárias de rua, enquanto um murmúrio distante da cidade – misto de buzinas, passos apressados e vozes indistintas – cria uma atmosfera urbana que pulsa sob o manto da noite.
Eriberto encosta-se com a elegância de um predador na porta do restaurante, segurando um charuto quase apagado entre os dedos, a fumaça que se ergue se enrolando em arabescos sinuosos no ar úmido. Seu olhar é frio, calculista, um homem que observa o mundo com a precisão de quem sabe manipular cada movimento do tabuleiro.
Ao seu lado, Consuelo, impecável num tailleur de seda com tons de cinza e rosa pálido, exala uma elegância seca e implacável. Seu sorriso é uma lâmina que corta sutilmente qualquer deslize de quem a cerca. Mais atrás, Stella ajeita a bolsa com um gesto quase ritualístico, seu rosto iluminado por um sorriso que mistura doçura e domínio, enquanto o vestido preto de seda abraça a barriga já arredondada da gravidez.
Surge então o manobrista, um jovem discreto, que se aproxima quase em reverência para entregar a chave do carro a Eriberto. O gesto de Eriberto é lento, elegante, sem pressa, como quem segura o tempo nas mãos.
STELLA - (voz baixa, segura, como uma regra de ouro) Passo no apartamento da minha mãe antes. Vocês podem ir para casa.
Eriberto não desvia o olhar do charuto que apaga nos dedos antes de responder.
ERIBERTO - (com a voz calma de um rei que nunca é contrariado) Claro, querida.
Consuelo, que há algum tempo observa tudo e todos com um misto de desaprovação e prazer velado, sorri com frieza.
CONSUELO - (com um toque de ironia, olhando para Eriberto) Eu espero você no carro.
Antes que ele possa responder, a porta do restaurante se abre, trazendo um sopro diferente para a noite.
Laurinha Mendonza aparece, impecável numa silhueta preta de corte perfeito, com a postura segura e o sorriso meio provocante que conquistou seu espaço. Nos braços, carrega Roberto e Sibele — dois bebês de colo, ambos bem cuidados, sob o olhar atento da babá que a acompanha.
Há um breve e calculado cumprimento entre os adultos. Stella, com um sorriso quase maternal, se afasta devagar, cedendo espaço para a troca de olhares que se segue.
Consuelo, num murmúrio quase para si, lança para Eriberto:
CONSUELO - (baixinho, entre censura e divertimento) Vou esperar você no carro.
Eriberto, por sua vez, não esconde o olhar que desliza em Laurinha, do salto fino ao decote discreto, com desejo contido, como se degustasse um vinho raro.
ERIBERTO - (com um sorriso malicioso, lento) Você fica uma delícia de preto, Laurinha.
Laurinha se aproxima, deixando a mão deslizar com leveza pelo braço dele, a voz baixa e cheia de segundas intenções.
LAURINHA - (sorriso provocante) Adoro um criminoso do colarinho branco.
O sorriso de Eriberto se amplia, o canto da boca levantado num desafio.
ERIBERTO - (com a calma de quem sabe seu valor) Eu gosto mesmo é das suas contribuições generosas para a campanha.
Laurinha ri, um som rouco, que preenche o ar com promessas.
LAURINHA - (olhando nos olhos dele, com uma pitada de sarcasmo) Você faz por merecer, gostoso. Trabalho duro na cama pra isso.
Ele se inclina, o rosto quase tocando o dela, a voz um sussurro.
ERIBERTO - (sussurra, carregado de provocação) E eu adoro uma tigresa que sabe caçar.
Laurinha inclina a cabeça, um olhar que mistura desafio e desejo que brilha no escuro.
LAURINHA - (voz baixa, lenta, um convite velado) Vamos ver até onde vai esse jogo, hein, gostoso.
O toque ligeiro da mão de Laurinha no braço de Eriberto sela a promessa silenciosa. No fundo, Consuelo observa tudo, franzindo o cenho — sua expressão é uma mistura de alerta e cálculo, como se já antevisse as peças se movendo no tabuleiro, e os riscos que aquela “amiga” representa.
A câmera se afasta lentamente, enquanto a luz âmbar banha a cena, o murmúrio da noite se intensifica, e o peso da cidade se faz sentir. No jogo entre poder, desejo e segredos, todos sabem que estão apenas começando.
CORTA PARA:
CENA 4 – APARTAMENTO DE BRUNO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA — “DOIS PRA LÁ, DOIS PRA CÁ” — ELIS REGINA
O apartamento de Bruno é amplo, moderno e silenciosamente opulento. Vista panorâmica da orla de Ipanema. Vidros do chão ao teto. O reflexo da cidade brilha sobre o mármore cinza-claro.
Na mesa de centro, uma revista aberta em destaque: capa com a foto de Bruno sorrindo, de jaleco, mãos cruzadas sobre a barriga de uma atriz famosa. Título em letras garrafais: “O Obstetra das Estrelas”.
Um vinil gira na vitrola, enchendo o ambiente com a bossa dolente de Elis. Cortinas esvoaçam suavemente com o vento salgado do mar. A atmosfera é quente, íntima, e carregada de promessas.
Toque de campainha. Bruno, descalço, camisa branca semiaberta, o colarinho desalinhado. Charme natural de quem nunca precisou se esforçar muito. Caminha até a porta com calma de predador satisfeito. Abre.
Stella está ali. Vestido de seda preta, longo, de gola alta, mangas compridas. Uma elegância arquitetada com precisão. O batom escuro acentua os olhos — frios e brilhantes como vidro temperado. Ela repousa a mão no ventre com o cuidado de quem protege um trono.
BRUNO - (sorriso suave, quase terno) Você veio.
Stella entra sem dizer nada. Fecha a porta com um leve empurrão do pé. Vai direto até ele e o beija com fome contida, como se estivesse reivindicando o que já é seu. Ele a envolve nos braços, mas logo recua, pousando o olhar sobre o ventre com uma mistura de fascínio e temor.
BRUNO - (baixo, como se temesse quebrar o encanto) E o Eriberto?
STELLA - (dá de ombros, com ironia seca) Acredita em mim. Acredita no casamento. Na minha "pureza". Na vocação feminina pra fidelidade. (um sorriso venenoso, perigosamente calmo) Sou fiel a ele como serei na política. Sempre pendendo pro lado onde me dá mais prazer.
BRUNO - (se aproxima, toca o queixo dela) Você podia pôr fim a essa farsa. Ficar comigo. Eu sou mais rico que ele.
STELLA = (ri baixo, encostando a testa na dele, íntima e cruel) Você ainda acha que é por dinheiro? (olhos nos olhos) Tô com ele por poder. E por que abriria mão disso se posso ter os dois?
Silêncio. Denso. Tenso.
Bruno sorri, sem humor. Seus olhos perdem o brilho. Ele dá um leve tapa no rosto dela — um gesto íntimo, mais indignado que violento. Quase uma súplica disfarçada.
BRUNO - (voz baixa, carregada de desejo e frustração) Sua filha da puta...
STELLA = (sorri, satisfeita, provocante) Grávida fica com mais tesão. Você não sabia?
Ele desliza a mão pela curva das costas dela, até a base da coluna. Com lentidão, levanta o vestido. As mãos seguem com domínio absoluto.
BRUNO - (sussurra, com um meio sorriso) Sexo na gravidez é seguro.
E, entre nós. É mais gostoso.
O refrão de Elis retorna, embalando a tensão erótica. A câmera não mostra corpos — mostra gestos, olhares, pele arrepiada. A música se funde ao suspiro contido de Stella.
A cidade lá fora segue indiferente, enquanto dentro daquele apartamento, sexo, política e ambição se entrelaçam como se fossem uma coisa só.
CORTA PARA:
CENA 5. APARTAMENTO DE CELESTE. COZINHA. INT. NOITE
O apartamento de Celeste carrega as marcas de um passado glorioso. O piso de tacos encerados range discretamente. A cozinha, de traços antigos, mistura memórias com ostentação fora de época: azulejos florais desbotados, armários de fórmica com puxadores dourados gastos, panelas de cobre polidas religiosamente pendem como relíquias.
A mesa é posta com exagero para duas pessoas. Toalha de linho bordada à mão, bule de prata inglês, xícaras de porcelana com filetes dourados — uma mise en scène para manter a ilusão de grandeza.
Celeste, ex-matriarca da sociedade carioca. Os cabelos puxados num coque elegante. Robe de seda azul-petróleo, colar de pérolas discreto. Ela serve o chá como se fosse um ritual litúrgico.
Márcia, grávida de oito meses, está sentada à mesa. O rosto idêntico ao de Stella, mas o olhar é outro: mais calmo, menos afiado, marcado por noites mal dormidas. O vestido de algodão claro, sem grife. As mãos repousam sobre a barriga com uma doçura quase distraída.
CELESTE - (entregando a xícara, voz doce com veneno diluído) Você devia colocar açúcar, Márcia. Chá amargo combina com escolhas amargas.
MÁRCIA - (segura a xícara com delicadeza, evitando confronto) Prefiro o gosto real das coisas. Açúcar disfarça demais.
CELESTE - (ri com um ar de desdém, sentando-se) É você sempre gostou de viver sem disfarces. Por isso vive com um homem sem futuro. (pausa, alisa o pano da mesa) Stella, ao menos, soube escolher. Se casou com um homem que faz a diferença. Você se apaixonou por um escritor. Charmoso, sim, mas um morto de fome.
MÁRCIA - (olha com firmeza, mas sem arrogância) Giusepe é o que diz ser. E é suficiente. Temos nosso canto, nosso carro...
CELESTE - (interrompe, rindo curto) Tem um carro popular e um apartamento de 400 metros quadrados no Leblon — que, aliás, está no meu nome. (se inclina levemente, olhos nos dela) E você chama isso de “viver bem”?
MÁRCIA - (serena, como quem já ouviu tudo mil vezes) Prefiro isso a viver com um homem que desprezo.
CELESTE - (aponta com a colher de chá como quem dá uma sentença) Ele é escritor, Márcia. No Brasil, isso é quase ser mendigo com diploma. (pausa dramática) Você já viu os números do IBGE? Quase 12% da população é analfabeta. Acha mesmo que um país que mal lê bula vai se comover com literatura?
MÁRCIA - (firme) Giusepe escreve porque precisa dizer algo.
Mesmo que ninguém ouça.
CELESTE - (ri, mais alto agora — prazer na ironia) Que nobreza! (bebe um gole, sorri) Se o brasileiro tivesse bom gosto, Força de um Desejo teria dado ibope. E era uma boa novela. (se vira, encara a filha como quem acusa) Mas nem pra assistir TV esse povo presta.
MÁRCIA - (suspira, sem ironia) Nem todo mundo precisa ser milionário pra ser feliz, mãe.
CELESTE - (morde um biscoito amanteigado com delicadeza estudada) Você repete isso como quem reza. Mas repete com a barriga cheia. E cheia graças a mim.
Silêncio. Um ruído ao longe — um carro atravessando uma poça, o ponteiro do relógio de parede, a chaleira ainda soltando vapor abafado.
O tempo parece reprimir Márcia tanto quanto a mãe. O clima pesa — como se toda a herança emocional da família estivesse condensada no ar daquela cozinha.
CORTA PARA:
CENA 6. PRÉDIO DE CELESTE. FACHADA. EXT. NOITE
SONOPLASTIA — “ABRÁZAME ASÍ” – ROBERTO CARLOS
A fachada do prédio é austera, aristocrática, mas vencida pelo tempo. Uma daquelas construções tradicionais do Leblon, com grades de ferro forjado, vitrais manchados pelo sal do mar, e samambaias pendendo das sacadas como relíquias teimosas.
A pintura está discretamente descascada — o tipo de decadência que se esconde com monogramas bordados e talheres herdados.
MÁRCIA surge na pequena escadaria.
Grávida de oito meses, veste um vestido de algodão branco com rendas suaves, sandálias baixas, os cabelos soltos sobre os ombros. A mão repousa sobre o ventre com a naturalidade de quem carrega mais do que um filho — carrega a promessa de um futuro melhor.
Na calçada, GIUSEPE a espera.
Camisa de linho amassada, colarinho aberto, cabelos desalinhados com charme involuntário. Um livro semiaberto nas mãos. O olhar é profundo, meio cansado, mas firme. A beleza dele tem algo improvisado, como se viesse de dentro.
Eles se olham. Um silêncio antigo se estende entre os dois — não de distância, mas de intimidade. Márcia sorri, leve. Ele retribui com os olhos.
Começam a caminhar.
O som das ondas distantes se mistura ao refrão instrumental do bolero. O asfalto ainda molhado reflete os postes de luz amarela. Vitrines fechadas. Um cachorro dorme diante de uma banca de jornal. A cidade parece suspensa no tempo.
GIUSEPE - (sem olhar diretamente, voz baixa, sardônica) Como foi o chá com a rainha da aristocracia decadente?
MÁRCIA - (sorri, exausta) Os mesmos discursos de sempre. Elitismo servido com chá de erva-doce e biscoitos amanteigados. E um toque de culpa católica por cima.
GIUSEPE - (olha de lado, já sabendo) Ela te ofendeu?
MÁRCIA - (olhar cansado, sincero) Hoje foi mais sutil. Chamou você de “um escritor com destino previsível”.
GIUSEPE - (ri, sem humor) Elegância de salão de chá. Ela ainda acha que eu devia abrir uma empresa de segurança ou vender consórcio?
MÁRCIA - Ela acha que você devia dar lucro. Que escrever é masturbação de gente que se recusa a crescer. (baixa os olhos) Ela não diz assim, claro. Ela nunca diz. Mas pensa com todas as sílabas.
GIUSEPE - (para, olha pra ela com seriedade) E você? Pensa o mesmo?
MÁRCIA - (para também, segura a mão dele) Não. Eu te amo por tudo o que você pensa. Pelo que você escreve. Pelo que você é. (pausa)
Mas dói ouvir que a casa em que a gente mora, a comida que a gente come vem dela.
GIUSEPE - (baixa o olhar, magoado) Então é isso? Você também me vê como um coitado?
MÁRCIA - (chega mais perto, firme) Não. Eu te vejo como alguém que teve coragem de não ceder. E isso assusta até quem ama.
GIUSEPE - (caminha devagar de novo) Coragem não paga conta.
MÁRCIA - Mas alimenta a alma. (sorri, suave) E é por isso que eu fico. É por isso que eu espero. Porque eu acredito que um dia vão te ouvir. Mesmo que seja tarde. Mesmo que já seja póstumo.
GIUSEPE - (para novamente, coloca a mão na barriga dela) Talvez essa pessoinha aqui leia o que eu escrevi.
MÁRCIA - Talvez essa pessoinha aqui escreva o que você viveu.
Eles se abraçam. Longo. Quente. Silencioso. Um abraço de aliança, de dois mundos diferentes que tentam, de algum modo, coexistir. A música entra com o refrão.
A câmera se afasta devagar. O casal some na noite. A calçada molhada, vitrines escuras, o som distante do mar. Um táxi passa ao fundo, solitário. A cidade parece observar.
CORTE PARA:
CENA 7. RIO DE JANEIRO. EXT. AMANHECER
SONOPLASTIA — “ABRÁZAME ASÍ” – ROBERTO CARLOS
O céu se abre em tons de azul pálido e âmbar. A cidade acorda lentamente.
Planos lentos sobre o mar do Leblon, onde as ondas quebram com um ritmo preguiçoso.
O calçadão ainda vazio, com poucos corredores matinais. Um gari varre a calçada com gestos ensaiados pela rotina.
Alguns táxis encostados. Vitrines embaçadas. A cidade respira fundo — como quem não sabe se está recomeçando ou apenas sobrevivendo mais um dia.
A CÂMERA SOBE:
Passa por uma varanda com samambaias pendentes.
Subimos mais até encontrar um prédio elegante, mas cansado, desses que carregam prestígio no nome — não no concreto.
Chegamos ao último andar. A cobertura.
CORTE PARA:
CENA 8 – COBERTURA DE ERIBERTO E STELLA. SALA DE JANTAR. INT. MANHÃ
A luz da manhã rasga o cômodo em feixes dourados. O mar do Leblon se exibe pelas janelas panorâmicas como um quadro vivo — sereno, distante, imutável.
A sala é de um luxo sem ostentação barulhenta: mesa de mármore italiano, louças finíssimas, prata antiga polida, geleias de rótulos franceses. Frutas dispostas como esculturas. Sofisticação coreografada — fria como uma convenção social.
Consuelo, imponente em um vestido vermelho-sangue de seda pura, toma chá sozinha. Postura ereta. Cada gesto tem precisão cirúrgica. O silêncio que a envolve é dominado, nunca constrangedor.
Stella entra. Oito meses de gravidez, mas a postura de uma mulher no controle — ou fingindo que está. Vestido preto de seda, alças finas, cabelo em ondas suaves. A beleza é imaculada, mas os olhos denunciam o desgaste.
STELLA - (baixa o tom, senta-se) Bom dia.
CONSUELO - (sem pressa, sem levantar o olhar) Bom dia, minha nora favorita. — Única, infelizmente.
STELLA - (sorri breve, serve-se de café) Passei a noite com minha mãe. Foi uma visita tranquila.
CONSUELO - (olhos enfim se erguem, gelados) Tranquila? Curioso, porque Celeste me ligou hoje cedo. Estava aflita, disse que ficou de passar lá e não foi.
STELLA - (engole a seco, sem perder o tom) Ela deve ter se confundido.
Anda um pouco desorientada, às vezes.
CONSUELO - (pousa a xícara com leve firmeza) Se vai mentir, aprenda a fazer isso direito. Mentira mal contada desgasta mais que escândalo. (pausa curta, pontua com crueldade doce) Você está casada com um homem que sonha em ser presidente. Não pode se dar ao luxo de ter um amador como cúmplice.
STELLA - (se vira levemente, tensa) Está insinuando alguma coisa?
CONSUELO - (sorri, indulgente como quem adestra) Não, Stella. Estou aconselhando. Seja mais esperta do que deputado de quinta desviando verba. Quem trai não pode deixar digitais.
Som de passos duros no mármore.
Eriberto entra. Terno escuro sob medida, gravata em tom sóbrio. Barba recém-feita. Poder polido e embutido nos gestos. Ele já ouviu o suficiente.
ERIBERTO - (calmo demais) Quem não pode deixar digitais?
O ambiente congela.
CORTES PRECISOS:
– Stella, pálida, finge ajeitar a colher na xícara. A mão treme.
– consuelo, impassível, mastiga lentamente uma fatia de mamão, o olhar levemente divertido.
– Eriberto, em pé, observa as duas. Não pisca.
A respiração de Stella se acelera — imperceptível para todos, menos para o público.
Silêncio. O som do mar ao fundo.
A tensão poderia cortar o vidro fosco da janela.
CORTE PARA:
FIM
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