A OUTRA
CAPÍTULO 4
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1 – APARTAMENTO DE CELESTE. SALA DE ESTAR. INT. MANHÃ
SONOPLASTIA – ROUND MIDNIGHT - THELONIOUS MONK
A sala carrega os restos de uma elegância fatigada. Tapetes claros de lã gasta, poltronas firmes demais, flores artificiais em vasos de cristal como pequenos disfarces de vida.
A luz da manhã atravessa as cortinas de linho, revelando mais do que deveria — pó nas bordas do aparador, um porta-retrato levemente torto, um leve odor de lavanda vencida.
Celeste surge de robe azul-petróleo, o tecido acetinado que brilha demais sob a luz. Segura uma xícara de café com as duas mãos, como se fosse o cetro de sua monarquia falida.
Sentada em seu trono: o sofá mais caro da sala. Olhar firme, coluna ereta. A expressão de quem já acordou julgando o mundo e, claro, vencendo.
Stella entra. Os óculos Chanel cobrem metade do rosto, mas o silêncio impõe presença. Vestido preto, discreto e cirúrgico. O coque preso com perfeição artificial — um penteado que, como ela, jamais admite falha.
Ela caminha até o sofá como quem atravessa um palco. E se senta com domínio silencioso.
CELESTE - (não levanta) Veio ver se eu sobrevivi ao tapa ou se a outra já mandou me internar?
STELLA - (senta-se com classe) Vim porque preciso da sua cabeça. A sua mais estratégica. A de cobra velha.
CELESTE - (sorri de canto) Charmosa como sempre. Fale, serpente mais nova.
STELLA - Eriberto viajou. Paraty. Mentiu pra mim. Disse que foi atrás de doadores para campanha. Mas tá com a Laurinha.
CELESTE - (dá um gole no café, seca) Homem sem alma. Mentiroso até quando respira.
STELLA - Eu vou pra lá.
CELESTE - Fazer o quê? Tomar banho de mar? Fingir que tropeçou no romance deles?
STELLA - Vou ser flagrada. Grávida. Num momento de estresse. E aí (pausa calculada) parto prematuro.
CELESTE - (frontal) Você enlouqueceu. Não tem como induzir o parto assim.
STELLA - Tem. Com alguém que entenda o corpo e que queira me agradar.
CELESTE - (brusca) O Bruno?
STELLA - Ele faria. Pelo prazer de me ver em cena. E pelo ciúme de ver Eriberto na plateia errada.
CELESTE -Se você e Bruno forem juntos, dá pinta. Todo mundo vai ver.
STELLA - Eu sei. Por isso vou levar a Márcia também. Ela vira cortina de fumaça.
CELESTE - (ri baixo, amarga) Tua irmã virou assessora de encenação agora?
STELLA - (minimalista) Ela me deve. E a essa altura, todo mundo deve alguma coisa pra alguém.
Pausa. Celeste levanta com teatralidade estudada. Cruza a sala com a postura de quem sabe o peso do próprio nome.
Vai até o aparador de madeira escura. Abre uma gaveta com lentidão medida.
Pega uma pequena caixa metálica de comprimidos. Agita. Chacoalho frio e seco — o som da imprudência que tem método.
CELESTE - Só espero que você saiba até onde vai. Porque quando uma mulher sangra. Nem sempre dá tempo de voltar.
STELLA -(ergue os óculos, revela os olhos frios) Eu nunca volto, mãe. Eu só avanço.
CORTA PARA:
CENA 2 – APARTAMENTO DE BRUNO. SALA DE ESTAR. INT. DIA
SONOPLASTIA – BACHIANAS BRASILEIRAS Nº 5 - VILLA-LOBOS - TOCA EM VINIL
A luz entra filtrada pelas persianas inclinadas. O ambiente é sóbrio, masculino, sofisticado sem ostentação: couro escuro, madeira nobre, livros de arte empilhados com precisão. Um leve cheiro de incenso de sândalo paira no ar. O silêncio parece organizado.
Bruno está de pé, de camisa branca com as mangas dobradas, o rosto cansado, os dedos deslizando no visor de um celular tijolão. Ao lado do sofá, uma bolsa de viagem semiaberta — preparada, mas ainda sem destino.
A campainha toca.
Ele vai até a porta. Ao abrir, o mundo muda de tom.
Celeste entra antes que ele diga qualquer coisa. Está impecável num conjunto bege claro, óculos escuros Chanel, colar de pérolas discretas. Carrega a própria gravidade como perfume.
CELESTE - (arrastando as palavras, sem tirar os óculos) Faça as malas. A gente vai pra Paraty.
BRUNO - (confuso, ainda segurando o celular) Mas eu tenho cesáreas hoje.
CELESTE - (tira os óculos com lentidão, os olhos gelados e calculistas) Então desmarque. O único parto que você vai fazer hoje é o da Stella.
BRUNO - (ri, sem graça, como quem não sabe onde isso vai dar) O bebê só nasce daqui a um mês.
CELESTE - (seca, direta) E é por isso que vai funcionar. Stella vai pegar o Eriberto com a Laurinha e vai ter o filho.
Ali. Prematuro. Nos braços da tragédia.
BRUNO - (dá um passo para trás, o tom sobe sem querer) Você enlouqueceu com ela? Acha mesmo que eu vou arriscar a vida do meu filho por um teatrinho?
CELESTE - (aproxima-se com um meio sorriso, venenoso) Seu filho? Pra você, talvez. Mas pra sociedade, pra imprensa, pra história? Ele é do Eriberto. (pausa — ela se aproxima ainda mais) E é isso que importa, Bruno. A culpa. A narrativa. O castigo.
BRUNO - (engole seco, tom abafado) Isso é doentio.
CELESTE - (sem hesitar, ergue o queixo como quem dá a sentença) Não. Isso é amor. Amor por Stella. E se você ama mesmo essa mulher, vai fazer o que ela precisa. Mesmo que doa.
Pausa. A música no vinil estala baixinho. Um raio de sol toca o couro do sofá. Bruno encara Celeste. Não diz nada. Mas a respiração dele já denunciou a dúvida. E a dúvida, naquele mundo, é meio caminho andado.
CORTA PARA:
CENA 3 – APARTAMENTO DE MÁRCIA E GIUSEPPE. SALA DE ESTAR. INT. DIA
SONOPLASTIA — O SOM DISTANTE DE CARROS PASSA PELA JANELA SEMIABERTA, MISTURADO A MURMÚRIOS ABAFADOS DA CIDADE QUE SEGUE INDIFERENTE LÁ FORA. UM RELÓGIO ANTIGO, DE PAREDE, MARCA O TEMPO EM TIC-TACS FIRMES, QUASE RITUALÍSTICOS, QUEBRANDO O SILÊNCIO PESADO DO AMBIENTE.
A sala é pequena, moderna, mas com toques que tentam trazer aconchego — almofadas desalinhadas sobre o sofá, quadros discretos nas paredes, livros empilhados com descuido aparente. Tudo carrega uma sensação de espera tensa, de segredo prestes a explodir.
Márcia está encostada na parede perto da porta, os olhos revelam preocupação contida, mãos ligeiramente trêmulas. Ela abre a porta com um movimento cuidadoso.
Stella entra. Ainda vestida de preto, óculos escuros enormes escondendo parte do rosto, cabelo preso num coque impecável — porém, seu semblante revela uma fragilidade inesperada, como se uma tempestade interna estivesse para romper.
MÁRCIA - (voz baixa, quase um sussurro)
Stella, o que aconteceu? Você está (pausa) destruída.
STELLA - (tentando controlar a voz, mas a emoção falha, embargada) Eu descobri, Márcia. Eriberto (pausa) está me traindo.
MÁRCIA - (se aproxima devagar, com cuidado materno) Calma, irmã. Não deixe essa notícia te destruir. Nada vai acontecer que não possamos enfrentar juntas.
STELLA - (nega com a cabeça, olhos fixos no chão, voz rouca) Nada vai me acalmar dessa vez, Márcia. Não dessa vez.
MÁRCIA - (incógnita, olhando direto nos olhos dela) Mas por que isso te abala tanto? É só mais uma amante. Isso não deveria...
STELLA - (interrompendo, suspiro profundo, olhos marejados) Não é pela amante. É pelo medo. Medo de ser abandonada. Medo de perder tudo que lutei pra conquistar. Ainda mais agora, com essa vida que cresce dentro de mim.
MÁRCIA - (toca os ombros de Stella, firme e reconfortante) Você não está sozinha, Stella. Eu estou aqui. Sempre.
STELLA - (ergue o rosto, olhos intensos, resoluta) Eu vou pra Paraty. Agora. E quero que você vá comigo.
MÁRCIA - (presa entre o medo e a lealdade, hesita) Stella, isso é loucura. Você sabe disso.
STELLA - (voz firme, sem margem para discussão) Se é loucura, então eu vou sozinha.
MÁRCIA - (um silêncio tenso. Depois, com convicção) Então eu vou com você. Até o fim.
STELLA - (sorri, um sorriso misto de alívio e gratidão, abraça a irmã com força) Obrigada, Márcia. Mais do que você imagina.
A câmera acompanha de trás as duas, abraçadas, enquanto a luz do sol entra suave pela janela, contrastando com a sombra do que está por vir. Um momento de união, mas também de silêncio que precede a tempestade.
CORTA PARA:
CENA 4 – PARATY. CLIPE. EXT. DIA
SONOPLASTIA – “QUERIDA” - DANILO CAYMMI
IMAGENS CLIPADAS – Um recorte sutil e luxuoso de Paraty no verão de 2000. Ruas de pedra molhada pelo suor do dia. Casarões coloniais de cores suaves, como açúcar queimado e hortelã seca. Portas de madeira robustas, varandas de ferro rendado. Em cada esquina, uma promessa que envelheceu bem.
Câmeras discretas dos turistas. Barcos coloridos ancorados.
Pescadores rindo sem pressa. Crianças descalças correndo sob o sol.
Close em Stella e Márcia dentro de um carro de vidro limpo e ar-condicionado, contrastando com a poeira do lado de fora.
Stella dirige — o rosto como uma máscara de guerra.
Óculos escuros Chanel, coque impecável, batom sem rachadura.
A cidade ao redor é postal. Mas ela, dentro do carro, é puro editorial de vingança.
Márcia, no banco do carona, absorve Paraty com os olhos e o coração inquietos. Há encanto no olhar dela — e também um medo vago de estar entrando num jogo acima do seu preço.
A música termina em fade. A câmera acompanha o carro dobrando a esquina.
CORTE PARA:
CENA 5. CARRO DE STELLA. INT. DIA
SOM AMBIENTE – MOTOR EM ROTAÇÃO BAIXA, CASCALHO RANGENDO SOB OS PNEUS.
O INTERIOR DO CARRO É UMA CÁPSULA DE SILÊNCIO CALCULADO. O CALOR DA TARDE ENTRA PELAS JANELAS ENTREABERTAS.
Stella dirige como quem dança — com controle absoluto sobre o cenário.
Mas há tensão sob a pele. Os dedos estão firmes no volante, os olhos leem mais que a estrada.
Ela pega o telefone tijolão com um gesto seco.
Tecla com elegância robótica. A ligação inicia.
STELLA - (voz doce, falsa como perfume vencido) Oi, querida. É a Stella. Eu tive que vir pra Paraty de última hora e queria fazer uma surpresa pro Eriberto. (pausa dramática, como se fosse íntima da secretária) Você pode me dizer em que hotel ele está hospedado?
VOZ DA SECRETÁRIA (OFF) - Claro, senhora. Ele está na Pousada Guaraná. Quarto 211.
STELLA - (sem perder o tom açucarado) Perfeito. Obrigada, querida.
Ela desliga.
Por um segundo, nada se move.
Então, o rosto dela endurece. A mandíbula trava. Os olhos, atrás dos óculos escuros, queimam. Ela gira o volante. Uma curva seca. A direção de quem vai acertar contas.
MÁRCIA - (olha de lado, voz baixa, quase resignada) Você já sabe onde ele tá?
Márcia desvia o olhar para a janela, engolindo em seco. Seus olhos brilham, mas não é de sol. É medo — dela, da irmã que conheceu e da mulher que está ao volante agora.
STELLA -(sem virar o rosto, com frieza cirúrgica) Agora sei. E ele também vai saber do que eu sou capaz.
Ela pisa no acelerador. O carro dispara entre as pedras. Paraty segue, serena. Mas no interior do carro, algo ruge. E dentro de Márcia, algo também se parte - silenciosamente.
O destino está a duas esquinas — e o caos, a dois segundos.
CORTA PARA:
CENA 6 – POUSADA GUARANÁ. QUARTO DE ERIBERTO. INT. DIA
SONOPLASTIA – “SUCESSO SEXUAL” – ÂNGELA RÔ RÔ.
A canção invade o ambiente com sensualidade entorpecida. Grave. Insistente. Quase suja. A voz parece sair das paredes, como se o próprio quarto estivesse excitado.
O quarto é amplo, decorado com verniz de rusticidade cara. Cortinas pesadas bloqueiam o sol de Paraty. O ar-condicionado sopra com preguiça. Um cheiro doce e amargo mistura perfume caro, sexo e uvas espremidas no tapete.
Cama desfeita. Um sutiã rendado pende da poltrona. Copos suados. Gelo derretendo no balde. O tempo parou ali dentro — na última respiração do prazer.
Eriberto e Laurinha se devoram. Línguas, dentes, suor e risadas abafadas. Um amasso elegante e animalesco, simultaneamente.
ERIBERTO - (entre beijos, voz grave) Minha coelhinha...
LAURINHA - (mordendo o lábio) Então me dá a cenourinha...
Eles riem. Se abraçam. Tropeçam no lençol. Caem de novo na cama — mas a batida seca da porta interrompe o segundo ato.
Uma batida na porta. Silêncio. Os corpos se congelam por um segundo. Só o som do ar-condicionado persiste, impassível.
ERIBERTO - (levanta-se com um meio sorriso, só de cueca branca) O champanhe.
LAURINHA - (sorri confusa) Mas você pediu quando?
ERIBERTO - (ajustando o cabelo no espelho) Quando você tava no banho. Se limpando do round anterior.
Ele atravessa o quarto com a segurança cínica de quem já se acostumou a não ser pego.
Abre a porta.
Corte rápido para o rosto de Stela. Parada como uma estátua antiga. Óculos escuros Chanel. Vestido preto colado ao corpo. Batons vermelhos — o tom da guerra. A barriga redonda e firme. Ela sorri. Mas o sorriso não é humano. É símbolo.
STELLA - (entrando, cortante) Nossa, Eriberto (pausa) Me esperando de cueca?
ERIBERTO - (trava. Pálido.) Stella?
STELLA - (tirando os óculos, com um gesto quase cerimonial) Surpresa!
Ela entra com passos secos. Cada salto é uma nota grave batendo no assoalho de madeira. Laurinha, envolta apenas num lençol bege, parece um retrato de hotel fora do lugar. Constrangida, puxa o tecido como se pudesse se esconder dentro dele.
ERIBERTO - (tentando se recompor) O que você tá fazendo aqui?
STELLA - (olha ao redor com um desdém estético) Vim fazer uma surpresa pra você. Mas acabei surpreendida. Por vocês dois. E por essa colcha tenebrosa.
LAURINHA - (grunhido envenenado) Sai daqui, Stella.
STELLA - (não olha pra ela) Eriberto deve estar emocionado. Cueca, champanhe. E a mães dos filhos dele na plateia.
A vida imita o teatro barato.
ERIBERTO - (dando um passo, mais firme)
Stella, do que você tá falando?
STELLA - (sorri como quem serve o último prato de um banquete cruel) Ah, Laurinha nunca contou? (caminha devagar até a beira da cama) Os filhos dela. Não são do falecido bilionário. (olha para Laurinha com um misto de pena e escárnio) Nem pra engravidar do homem certo, Laurinha serviu.
Silêncio absoluto. Só o som do gelo derretendo no balde.
Só o ar-condicionado zumbindo como um juízo final.
STELLA - (sussurra com perversidade elegante) Os filhos, Eriberto. São seus.
Eriberto abre a boca, mas não diz nada.
Laurinha vira o rosto, mas a vergonha já se espalhou pela pele.
A câmera fecha no olhar de Stella — duro, gelado, invencível.
CORTA PARA:
FIM
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