A OUTRA

CAPÍTULO 5

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1 – POUSADA GUARANÁ. QUARTO DE ERIBERTO. INT. DIA

 

SONOPLASTIA – O AR-CONDICIONADO SIBILA ALTO, COMO UM SUSSURRO CORTANTE. O QUARTO ESTÁ IMPREGNADO DE CALOR HUMANO E LUXÚRIA VENCIDA. A MÚSICA CESSOU — SÓ RESTA O SOM DO CONSTRANGIMENTO EM ESTADO BRUTO.

 

STELLA está parada na porta, grávida, com o vestido preto colado ao corpo. O tecido úmido da viagem acentua a silhueta da gestação avançada. Os óculos escuros ainda escondem seus olhos — mas o tom da voz é nítido, venenoso.

ERIBERTO está de cueca, sem fala, a mão ainda na maçaneta.
LAURINHA, seminua, envolta no lençol, assustada e furiosa.

STELLA - (sem alterar o tom) Conta pra ele, Laurinha. Agora. Ou eu conto.

LAURINHA - (respira fundo, como quem engole ácido) Eriberto (PAUSA) Os meninos, eles são seus.

Pausa. O mundo escorrega pelas paredes do quarto.
O silêncio é esmagador.

LAURINHA - (voz trêmula) Eu contei pra ela no banheiro do Municipal. Depois da ópera.

STELLA - (sorriso seco) Enquanto a plateia chorava por Turandot, ela me apunhalava com Puccini.

ERIBERTO - (a raiva sobe) Você é doente, Laurinha. Você me escondeu isso? Me tirou dos meus filhos? Você me deixou acreditar que eles eram do maldito velho!

LAURINHA - (agressiva) Você teria feito o quê? Assumido? Casado? Você nunca foi feito pra ser pai, Eriberto.

STELLA - (sussurra, cortante) E você nunca foi feita pra ser mulher de verdade. Só sabe ser um escândalo.

ERIBERTO - (gira pra Stella) E você? Veio até aqui grávida, com essa barriga de espetáculo, pra quê? Aplauso?

STELLA - (olha fixo) Não me oponho a amantes, Eriberto.
Desde que não deixe herança genética nelas.

LAURINHA - (gemendo, prestes a desabar) Você é doente, Stella.

STELLA - (nem olha) E você é básica.

Pausa. Ela então se contorce levemente.
As mãos deslizam até o ventre, que é real. Grande. Vulnerável.
Ela arqueia o corpo como se sentisse algo... e então estoura uma pequena bexiga de água escondida entre as coxas — como um truque de mágica de baixa tecnologia, mas com altíssima carga dramática.

Som de água escorrendo pelo vestido. Eriberto empalidece.

STELLA - (finge dor, mão sob a barriga) A bolsa (pausa)Estourou

ERIBERTO - (desesperado) Stella!? Meu Deus, senta, eu vou chamar alguém!

STELLA - (caminha com rapidez até a porta, a mão firme no batente) Não. Você já me ajudou demais por hoje. (um sussurro que é uma sentença)
Agora vocês que limpem isso.

LAURINHA - (grita, percebe o plano) Isso é teatro! Você tá armando!

STELLA - (para na porta. Tira os óculos. Os olhos estão secos. Gélidos.) Melhor teatro do que tragédia. E vocês dois sempre preferiram plateia ao palco.

Ela sai, batendo a porta com precisão cirúrgica.

CORTE PARA:

CENA 2 – POUSADA GUARANÁ. FACHADA. EXT. DIA

 

SONOPLASTIA – O SOM ÚMIDO DAS CIGARRAS SE MISTURA AO SUSSURRO DAS FOLHAS ALTAS. PARATY RESPIRA COMO UMA CIDADE DO SÉCULO XIX: LENTA, QUENTE, SUSPENSA NO TEMPO.

 

A fachada colonial da pousada contrasta com o escândalo que se aproxima.
Na calçada de pedras irregulares, Márcia aguarda junto ao carro.
A barriga de grávida realça sua fragilidade, mas o olhar revela outra coisa: suspeita, exaustão... medo do que não foi dito.

Ela se abana com um folder turístico, desconfiada. Está inquieta.
O tempo parece se expandir — até que a porta da pousada se escancara.

Stella surge como uma personagem de ópera em seu terceiro ato.
O vestido preto está colado ao corpo. O tecido escuro acentua o contorno da gravidez.
As pernas estão molhadas. O líquido escorre — verdadeiro ou não, é irreversível.
O drama está lançado.

STELLA - (voz alterada, mas sem histeria — teatral, milimetricamente medida) Márcia! A bolsa estourou! A gente precisa ir pro hospital. Agora!

MÁRCIA - (corre até ela, segurando pelo braço) Stella, pelo amor de Deus (pausa) Você tá sentindo dor? Contração?

STELLA - (uma pausa, respiração ofegante e performática) Dor ainda não. Mas tá vindo. Tá vindo, Márcia. Eu vi a cara deles.
Ele ficou branco.

MÁRCIA - (horrorizada, ajudando Stella a entrar no carro) Você armou isso...

STELLA - (senta no banco do carona com dignidade trágica)
Não armei. Preparei o terreno.

MÁRCIA - (acende o carro, mãos tremendo no volante) Você tá grávida, Stella. Isso é real. Não tem ensaio pra isso.

STELLA - (olha pela janela, como uma estrela contemplando o palco depois do ato final) Tudo é real, Márcia. Principalmente quando é encenado com perfeição.

O carro arranca. Ao fundo, a porta da pousada se abre novamente.

Eriberto, agora de bermuda e camisa aberta, surge ao lado de Laurinha, enrolada em um robe de hotel.
Ambos observam o carro se afastando — paralisados, derrotados, humilhados.

ERIBERTO - (para si mesmo, como quem desperta de um pesadelo real) O que ela fez...

LAURINHA - (com desprezo contido) O que ela sempre faz. Rouba a cena.

CORTE PARA:

 

CENA 3 – CARRO EM MOVIMENTO. ESTRADAS DE PARATY. INT. DIA

 

SONOPLASTIA – NESSUN DORMA NA VOZ DE LUCIANO PAVAROTTI, TOCANDO NO TOCA-FITAS DO CARRO. O SOM É NOBRE, CLÁSSICO, QUASE DESPROPORCIONAL AO CENÁRIO AO REDOR — O CONTRASTE JÁ É UM COMENTÁRIO.

 

INTERIOR DO CARRO – Um modelo importado dos anos 90, já com sinais discretos de desgaste. Os bancos de couro claros estão manchados de tensão e calor. A estrada é de pedra irregular, com casarios coloniais passando pelas janelas como pinturas em movimento.

Stella, no banco do carona, permanece altiva, mesmo grávida. Usa óculos escuros Chanel, um lenço de seda no pescoço. Uma mulher no limite, mas que nunca deixa de parecer uma vitrine. Uma das mãos repousa na barriga como uma promessa. A outra ajusta a fita no som do carro.

Márcia dirige com os ombros duros. Ela transpira, mas tenta manter a compostura. Os olhos revezam entre o retrovisor e o trajeto sinuoso. Carros antigos, bicicletas e pedestres dividem o espaço em Paraty — uma cidade tão linda quanto traiçoeira.

MÁRCIA - (sem tirar os olhos da estrada) Você colocou Nessun Dorma?

STELLA - (sorri, fraca — mas teatral) É a única trilha sonora possível pra quando uma rainha sangra.

MÁRCIA - (irônica, nervosa) Ou pra quando uma mentira sai do controle.

STELLA - (de olhos fechados, provocante) A mentira sempre foi uma forma de arte. Só assusta os medíocres.

PLANO AÉREO – O carro percorre as ruas tortas e úmidas de Paraty como se estivesse entrando num palco antigo. Telhados coloniais, postes de ferro e janelas coloridas compõem a moldura do desastre iminente.

A trilha cresce.

Um fusquinha verde-água vai devagar à frente.
De uma rua lateral, uma camionete velha e sobrecarregada de verduras invade a pista, tentando desviar.

MÁRCIA - (grita) Merda!

Freia com força. As rodas deslizam na pedra sabão molhada.
O volante foge das mãos. O carro derrapa, toca a lateral da camionete com um estrondo — e capota.

SLOW MOTION - O tempo parece desacelerar enquanto o lenço de seda de Stella escapa das suas mãos e flutua no ar como uma bandeira frágil. A fita cassete salta do painel do carro, girando preguiçosamente, como um relicário perdido de uma época em que a vida ainda tinha ritmo. Um cacho solto do cabelo de Stella se desprende, dançando lento no espaço, quase se recusando a abandonar seu lugar. A barriga de Stella se projeta contra o cinto de segurança, uma presença viva e ameaçada, incha e se contorce sob a tensão do impacto iminente. E, por fim, o som imponente de Nessun Dorma distorce, se fragmenta, misturando-se ao ruído seco e cruel do choque — um grito silencioso de tragédia anunciada.

O CARRO gira no ar, atinge o chão, e desliza violentamente até bater de frente em uma casa branca colonial, abrindo um rombo na fachada e espalhando cacos, madeira e silêncio.

INTERIOR DO CARRO – O som parou. O mundo ficou opaco.

Stella está desmaiada. A cabeça tombada, o corpo curvado pelo cinto de segurança.
A mão ainda repousa sobre a barriga — um gesto ambíguo entre proteção e rendição.

Márcia, com um corte na testa, abre os olhos aos poucos. Tenta falar. Não consegue. O sangue escorre devagar pela bochecha.

A CÂMERA AFASTA — A cidade continua. As janelas se abrem. Pessoas correm na rua. Mas dentro do carro, o tempo congelou.

CORTA PARA:

 

CENA 4 – HOSPITAL DE PARATY. ENTRADA DE EMERGÊNCIA. INT. DIA

 

A ambulância freia com força em frente à entrada do hospital. Luzes vermelhas piscam contra a parede branca, profissionais de saúde descem em prontidão.

Stella está deitada na maca, o rosto pálido e úmido de suor, a barriga evidente sob o vestido justo, rígida como um muro prestes a ruir.

Márcia está ao lado, segurando a mão dela com força quase desesperada. Seu rosto, marcado pelo pânico, revela que a situação é grave — e que ela também carrega uma vida dentro de si, uma vida ameaçada.

Os paramédicos as carregam para dentro, passos apressados, murmúrios contidos. O corredor é um túnel branco, longo, impessoal, onde o tempo parece dilatar.

Bruno surge do nada, com o olhar cortante, o coração na garganta.

BRUNO - (voz carregada de medo e urgência) Stella! Márcia! O que aconteceu?

Antes que Márcia consiga responder, sente um líquido quente escorrer por suas pernas. A bolsa amarela e frágil que ela carregava — recheada de amnioto, uma promessa frágil da vida que cresce dentro dela — se rompe com um estalo seco e inesperado.

O som parece explodir em câmera lenta, ecoando nos corredores silenciosos.

Márcia se ajoelha, mãos tremendo, lágrimas escorrem pelo rosto, um grito contido no peito.

Stella, entre a dor e o choque, segura firme o braço de Bruno, a respiração curta, enquanto o destino das duas está prestes a mudar para sempre.

STELLA - (voz baixa, firme, quase um sussurro de promessa) Se vamos cair, que seja juntas. E de pé.

O hospital parece se fechar ao redor deles, a urgência transformada em silêncio expectante, onde só resta a luta pela vida que pulsa, insistente, contra tudo.

CORTA PARA:

CENA 5– HOSPITAL DE PARATY. CONSULTÓRIO. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — SONS ABAFADOS DE UM HOSPITAL ATIVO: VOZES APRESSADAS NOS CORREDORES, UM MONITOR CARDÍACO DISTANTE, O SUTIL RANGER DE PORTAS ABRINDO E FECHANDO.

 

O consultório é clínico e discreto, mas com um leve toque provinciano — as paredes brancas exibem quadros genéricos, a iluminação fluorescente expõe cada linha de tensão nos rostos.

Bruno entra primeiro, jaleco aberto, luvas nas mãos, a testa suada não só pelo calor — mas pelo conflito. Seus olhos revelam exaustão e indignação.

Celeste surge logo depois. Impecável. Um tailleur claro, salto fino, maquiagem intacta. Carrega sua bolsa como quem carrega um cetro. O olhar é de quem já decidiu tudo antes mesmo de chegar.

BRUNO - (voz seca, indignado) A loucura da Stella colocou a própria vida em risco de verdade. E agora a da Márcia também. A bolsa dela rompeu.

CELESTE - (senta-se com calma glacial) A prioridade é Stella. As duas são minhas filhas, Bruno. Mas a criança da Stella (pausa, olho firme) vai garantir o sucesso.

BRUNO - (irritado, encara) E eu vou priorizar o meu filho. É claro que vou.

CELESTE - (sorri com desdém, ajeita o colar) Você não entendeu nada.
Pra você, pode até ser o seu filho. Mas pro mundo inteiro, essa criança é do Eriberto. E você vai se comportar como um médico. Não como um pai escondido.

BRUNO - (passa a mão no rosto, tenso) Você tá pedindo que eu...

CELESTE - (interrompe, direta, fria) Faça a cesárea da Stella. Com calma, técnica e espetáculo. E que coloque qualquer plantonista pra cuidar da Márcia.

BRUNO - (olha pra ela, horrorizado) Você tá falando da vida das suas filhas.

CELESTE - (se levanta, digna, como quem dita ordens de Estado) Estou falando do futuro. Você quer proteger a Stella? Então proteja o que ela carrega. Essa criança é o trono. (pausa. Abre a bolsa devagar. Pega o celular como se fosse uma arma silenciosa) Eu vou ligar pro Giuseppe. Avisar que o filho dele vem aí. Mas não precisa saber que o pai vai chegar depois. (volta-se para Bruno, o olhar como lâmina) Vai. E seja rápido. O mundo não espera por dilemas morais.

CORTA PARA:

CENA 6 – HOSPITAL DE PARATY. SALAS DE CIRURGIA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA – APITOS DOS MONITORES CARDÍACOS. VOZES ABAFADAS SOB MÁSCARAS. SONS METÁLICOS DE INSTRUMENTOS CIRÚRGICOS. A TENSÃO FLUTUA NO AR COMO ANESTESIA.

 

A câmera percorre duas salas. Ritmos distintos, destinos entrelaçados.

SALA 1 – PARTO DE MÁRCIA

Márcia está sozinha, sem Giuseppe. Suor, dor, olhos arregalados. Um médico jovem orienta, sereno, mas distante.

MÉDICO - (baixinho, calmo) Força, Márcia (PAUSA) respira fundo. Empurra agora.

MÁRCIA - (gemendo) Ai, meu Deus (PAUSA) Meu Deus

O esforço é brutal. Um grito rasga o ar. O corpo inteiro se curva. A câmera foca o rosto suado, a mão apertando o lençol, os olhos fechados.

SALA 2 – CESÁREA DE STELLA

Bruno, cirurgião impecável. Preciso. Frio por fora, mas fervendo por dentro. Stella anestesiada, imóvel, inconsciente.

ENFERMEIRA - (sussurrando) Doutor, a incisão está pronta.

Bruno faz o corte. Os minutos passam. Silêncio cirúrgico. A câmera corta entre as duas salas, os sons se misturam, a tensão cresce.

SALA 1

MÉDICO - (de novo) Agora, Márcia! Mais uma!

MÁRCIA - (grita) AAAAAAAAH!

SALA 2

Bruno puxa o bebê. O ar é suspenso.

SALA 1 e 2 – SIMULTÂNEO

Duas meninas nascem. Dois choros explodem. Dois gritos de vida. Um instante que parte Paraty ao meio.

MÁRCIA - (chorando, exausta) É  minha?

A enfermeira entrega a bebê. Márcia a segura. Chora baixinho. Tremendo. Um milagre sem plateia.

SALA 2

Bruno segura a filha. Os olhos dele brilham. Mas a calmaria é curta.

ENFERMEIRA - (urgente) Doutor, a saturação caiu.

MONITOR – Bipes irregulares. Vermelho. Pânico.

MÉDICO 2 - (chegando, aflito) Hemorragia interna. A perda é alta.

BRUNO - (sem largar o bebê) Quanto tempo?

MÉDICO 2 - (frontal) Se não agir agora, vamos ter que retirar o útero.

Bruno trava. Entrega o bebê. Volta à mesa cirúrgica. As mãos tremem por um segundo. Depois, endurecem.

SALA 1

Márcia acaricia a filha. O rosto vencido pelo cansaço. Mas é o cansaço da guerra vencida.

SALA 2

Bruno, suado, envolto em sangue e urgência.

MÉDICO 2 - (rápido) Está sangrando por trás da parede uterina. Rápido!

BRUNO - (voz seca) Retração. Vamos abrir mais.

A luz reflete no bisturi. Um corte. Um fio de sangue. Um homem tentando salvar o que ama com as próprias mãos.

CORTA PARA: 



CENA 7 – HOSPITAL DE PARATY. SALA DE CIRURGIA. INT. DIA

SONOPLASTIA – O bip do monitor cardíaco acelera, descompassado, como se também perdesse o controle. Vozes abafadas sob máscaras, comandos curtos e secos. O tilintar dos instrumentos metálicos bate como um sino de alerta.
O foco cirúrgico projeta uma luz branca e cruel sobre o ventre exposto de
 Stella, como se o próprio destino a colocasse sob julgamento.

Bruno está curvado, encharcado de suor sob a touca. As mãos — sempre firmes, sempre técnicas — agora hesitam por milésimos de segundo. A respiração dele embaraça a máscara. Um homem em fratura, tentando se esconder dentro do médico.

ENFERMEIRA - (baixo, tensa, sem encarar ninguém)
Pressão despencando. O sangue não coagula.

MÉDICO 2 - (seco, mas com pânico disfarçado)
Temos que decidir, Bruno. Agora.

A câmera foca o rosto de Stella — anestesiada, imóvel, lívida — como uma boneca de porcelana entreaberta. Seus cílios se movem levemente, como se num último sonho.

BRUNO - (engole em seco, hesita)
Se tirarmos o útero (PAUSA) ela nunca mais...

Ele não completa. As palavras apodrecem na garganta.
O olhar de Bruno flutua — vê flashes dela sorrindo, dela grávida, dela mordaz. Vê o palco que ela montou — e agora, ele é o protagonista que ela não pode dirigir.

ENFERMEIRA - (direta, mais firme) Doutor, estamos perdendo ela.

Pausa longa. Dolorosa.O som dos batimentos no monitor vira um eco grave.O tempo parece suspenso.

Bruno fecha os olhos. Respira. Quando abre, os olhos são de outro homem. Cirurgião. Frio. Pronto.

BRUNO - (baixa e firme) Clamp. Ligadura. Vamos salvar a paciente.

As mãos dele voltam ao bisturi. As pinças brilham.
O sangue pulsa em jatos rítmicos.
A câmera acompanha a movimentação frenética da equipe — mãos trocando instrumentos, vozes abafadas se sobrepondo, uma corrida contra o destino.

A trilha sonora se dissolve em silêncio.

CORTA PARA:

CENA 8 – HOSPITAL DE PARATY. CORREDOR. INT. DIA

 

SONOPLASTIA – PASSOS FIRMES E ECOANTES DE ERIBERTO CORTAM O SILÊNCIO GÉLIDO DO CORREDOR. CONFORME A TENSÃO CRESCE, O ECO DOS SEUS PASSOS TORNA-SE MAIS MARCADO, REVERBERANDO PELO ESPAÇO VAZIO, AMPLIFICANDO SUA SOLIDÃO. O SOM AMBIENTE É FRIO: APARELHOS HOSPITALARES, MURMÚRIOS DISTANTES, UMA MÁQUINA BIPANDO EM SEGUNDO PLANO.

 

A luz é fria, quase clínica, iluminando paredes brancas e impassíveis. O corredor parece não ter fim, esticado e silencioso, uma prisão de vidro e concreto.

Eriberto surge no corredor, gravata desalinhada, camisa com os primeiros botões abertos. O suor em sua testa brilha sob a luz dura. Seus passos apressados reverberam, o peso do cansaço e da culpa marcados em sua postura.

Ele encontra Celeste sentada, imóvel, calma como um predador à espera. Folheia uma revista social com a precisão de quem não se deixa abalar. Num gesto quase imperceptível, uma de suas mãos aperta a revista com leve tensão, como um punho cerrado dentro da delicadeza aparente.

Eriberto, com a voz rouca e os olhos cansados, preso na batalha interna, pergunta tenso, carregado:

ERIBERTO – Stella (pausa) Como ela está? Onde está?

Celeste levanta o olhar devagar, um sorriso sarcástico e frio nasce nos lábios. Seu olhar é implacável, cheio de desprezo e desafio.

CELESTE - Está na cirurgia. A bolsa dela rompeu. Cesárea de emergência. Você sabe bem o porquê.

Ele engole seco, a culpa esmaga seus ombros. Eriberto baixa os olhos, lança um suspiro profundo, uma breve rendição à própria dor, antes de murmurar, quase uma confissão:

ERIBERTO - Se eu não tivesse ido atrás da Laurinha, nada disso teria acontecido.

Celeste se levanta devagar, seus passos precisos ecoam pelo corredor. Sua presença domina o espaço como uma sentinela implacável.

CELESTE - Não se iluda. Não é só a Laurinha que te afunda. É você mesmo. Seu orgulho, seu desejo de se enfiar onde não devia. O dinheiro dela? Uma corrente que te prende — e te destrói.

Ela para a poucos metros dele, encarando-o fixamente.

CELESTE - O que você quer, afinal? A esposa perfeita? Aquela que finge, que se cala? Ou a bilionário sem alma, que compra tudo — até a própria dignidade? Ou eleitorado? Aquela multidão faminta por espetáculo, por drama, por um deus com defeitos. Pra quem você vai dar o show?

Os olhos de Eriberto se fecham por um instante, pesado e derrotado.

Quando abre, responde com voz rouca e quase sem forças.

ERIBERTO - Nunca pensei, nem por um segundo, em trocar a Stella por ela.

Celeste avança um passo, seu olhar perfurante parece atravessá-lo.

CELESTE - Deseja. E desejar é pior que trair. Desejar é convidar o caos pra dentro de casa. E você? Vai deixar essa casa queimar?

O silêncio pesa, denso como chumbo no ar.

Eriberto baixa a cabeça, resignado.

ERIBERTO - Não vou deixar isso destruir o que construímos. Mesmo que a nossa família já esteja rachado.

Celeste dá um sorriso curto, irônico, quase um veneno líquido.

CELESTE - Família? Com você, sempre foi fachada. Peça num jogo de poder. E eu? Sou a jogada que você não sabe perder — E tem medo de ganhar.

Ela se afasta, os passos firmes ecoam no corredor vazio e silencioso. Eriberto fica parado, derrotado e esmagado pelo peso do que fez e do que teme perder.

CORTA PARA:

 

CENA 9 – HOSPITAL DE PARATY. UTI. INT. DIA

O ambiente da UTI é um santuário frio e implacável, silencioso além dos bipes das máquinas. Luz branca e intensa recai sobretudo, deixando o ar pesado, quase sufocante.

Stella está entubada, imóvel, pálida como uma estátua de porcelana, envolta em tubos que marcam a fragilidade da vida. A respiração mecânica ecoa no espaço fechado.

Bruno permanece do outro lado do vidro da UTI, isolado do mundo, uma ilha de sofrimento. Seus olhos vermelhos tentam engolir a dor, mas traem a batalha interna que trava — um homem preso entre o dever e a culpa, sozinho em sua vigilância silenciosa.

Do outro lado, a pequena bebê de Stella está na incubadora, seu choro delicado e pulsante preenchendo o silêncio com um som frágil, mas teimoso — uma promessa precária de vida.

A câmera desliza lentamente até o rosto de Bruno, que se contrai com o peso da responsabilidade. O olhar vazio se transforma em um sussurro amargo.

BRUNO - (voz baixa, quase inaudível, para si mesmo) Você queria uma cena (PAUSA) E agora tem o ato final.

A câmera se eleva, revelando o hospital sob um céu carregado. A chuva começa a cair com firmeza, batendo como um tambor triste no telhado, reforçando a sensação de opressão e desespero.

Celeste entra no corredor, cada passo seu ressoa no chão frio. Seu olhar é um farol de ressentimento, fixo em Bruno, perfurante e implacável, como se ele carregasse não só a culpa, mas o peso de todo o mundo dela.

CELESTE - (voz firme, cortante, quase uma acusação) Márcia está bem. E você? Continua aí, parado, como se o mundo pudesse esperar?

Bruno levanta o olhar, encontrando o de Celeste — um duelo silencioso, uma guerra de emoções não ditas. Ele está só, cercado por paredes de vidro, enquanto ela é o fogo que não o deixa escapar.

Fora, a chuva ganha força, um lamento abafado que ecoa o silêncio tenso dentro da UTI.

CORTA PARA:

 

CENA 10 – PARATY. EXT. ANOITECER

SONOPLASTIA – “DON’T TELL ME” – MADONNA.


O violão percussivo da introdução ecoa como passos contidos sobre pedras molhadas.

A luz dourada do entardecer desliza preguiçosa sobre as ruas de pedra de Paraty, tocando fachadas coloniais com seus tons desbotados. O sol se despede lentamente, tingindo o céu de laranja e púrpura. A maresia se mistura ao cheiro forte de cachaça, mofo antigo e jasmim vindo das janelas entreabertas.

CORTE PARA:

Uma figura feminina solitária avança por entre turistas distraídos e moradores indiferentes.
É
 Laurinha — nome diminutivo que jamais fez jus à mulher que ela se tornou.

O vestido de linho bege contrasta com sua expressão severa. Os cabelos soltos dançam com o vento, mas o rosto permanece imóvel. Ela não olha para os lados. Anda como quem sabe que todos os olhares a seguirão.

Ao som do primeiro refrão, a noite cai. A luz das janelas se acende uma a uma. Os sinos da igreja ao longe marcam o tempo da decadência, e da vingança.

Laurinha entra em um bar histórico — um relicário do passado, com paredes que já ouviram muitos segredos. O ambiente é de penumbra quente: velas sobre garrafas de vidro, candelabros tortos, mesas manchadas de vinho e tempo.

Ela senta-se no balcão como quem reassume um trono antigo. Tira os óculos escuros. Os olhos, maquiados com precisão, não escondem o cálculo. Nem a dor antiga.

O bartender hesita antes de se aproximar.
Laurinha cruza as pernas com elegância e pede algo que ele não entende de imediato — talvez um nome estrangeiro, talvez uma provocação.

Ela observa o salão pelo espelho atrás das garrafas. Vê os casais, os sorrisos, o desgaste.
E então, com um meio sorriso,
 Laurinha sussurra algo para si — um segredo que ninguém ouvirá.

CORTE LENTO PARA O EXTERIOR DO BAR.

A câmera sobe, revelando os telhados úmidos da cidade colonial. A noite caiu de vez.
A música segue, abafada, como se
 Laurinha a ouvisse apenas de dentro de si.

CORTA PARA:

CENA 12 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE MÁRCIA. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – “ABRÁZAME ASÍ” – ROBERTO CARLOS

 

Do lado de fora, a noite caiu sobre Paraty. A lua se esconde por trás de nuvens pesadas e as luzes do hospital ganham um brilho opaco, quase onírico. O quarto de Márcia é iluminado por abajures suaves e pelo reflexo intermitente dos postes do lado de fora, que atravessam as cortinas finas como fantasmas de luz.

Há uma quietude ali que não é silêncio — é reverência. O ar carrega um perfume de ternura e medo, de recomeço e incerteza.

Márcia repousa sobre travesseiros, ainda frágil, mas envolta por uma dignidade que o parto só amplia. Seus cabelos soltos sobre o lençol, a pele sem cor, mas o olhar — ah, o olhar — renascido, redescobrindo a própria vida através do outro.

Giuseppe entra com passos medidos, como se cada centímetro do chão precisasse da sua permissão. Os olhos dele estão úmidos, mas ele se recusa a piscar — como se o piscar fosse entregar-se ao choro.

Nos braços, a filha envolta em manta branca. Frágil. Serena. Um pequeno segredo entre eles e o universo.

GIUSEPPE - (voz embargada) Ela é nossa?

MÁRCIA - (sorri, com um nó na garganta) Sua. Minha. Do mundo. Mas agora, só nossa.

Ele se senta ao lado da cama. O gesto de passar a bebê para seus braços parece conter séculos de cuidado. O mundo inteiro cabe ali. Seus olhos encontram os da filha, e naquele instante — sem aplauso, sem testemunhas — um homem nasce pai.

GIUSEPPE - (baixinho, quase em prece) Ela é perfeita.

Enfermeira entra devagar, com passos treinados, sem quebrar o encanto. Mas carrega consigo a realidade, aquela que sempre chega sem convite.

ENFERMEIRA - (chegando com delicadeza) Desculpem interromper, mas por precaução, o pediatra pediu que ela passe a noite na incubadora. É só protocolo. Ela está bem.

MÁRCIA - (assente, compreensiva) Leve. Mas com cuidado, por favor. Ela é o que eu tenho de mais valioso.

A enfermeira recebe a bebê com um gesto experiente, quase maternal. Ao sair, a porta se abre discretamente — e ali está Celeste, surgindo como uma sombra refinada.

Entra sem pressa, com um tailleur que grita privilégio. O olhar não é de ternura, é de cálculo. E ainda assim, é impossível desviar dele.

CELESTE - (olhando a cena, olhos frios, sorriso contido) Que lindo. Amor. (Longa pausa) Mas vamos ser sinceras, não enche barriga. Se continuar assim, essa criança vai terminar no Comunidade Solidária do FHC.

O quarto se enche de um silêncio constrangido, cortante. A presença dela desestabiliza o ar.

GIUSEPPE - (sem desviar o olhar de Márcia) Ela tem pai. E mãe. E não precisa de esmola de governo.

CELESTE - (sorrindo, venenosa) Por enquanto.

Ela se aproxima da janela e observa a noite escorrendo pela cidade. Lá fora, as luzes da rua parecem cintilar mais tristes sob a chuva que ameaça cair.

CELESTE - Se tem uma coisa que eu aprendi é que os homens sempre juram que vão ficar. Mas é no segundo filho que a fila muda. E às vezes, nem precisa de segundo. Basta a conta de luz vencer.

MÁRCIA - (fraca, mas firme) Sai, mãe. Vai destilar veneno em outro lugar.

CELESTE - (suave) Tô indo. Mas não diz que não avisei.

Ela deixa o quarto sem olhar pra trás. Um rastro de perfume caro, de poder corrosivo, permanece por alguns segundos — junto com a dúvida que ela planta como quem colhe.

Giuseppe se ajoelha ao lado da cama. O gesto é quase religioso. Ele pega a mão de Márcia com doçura, sem pressa, como se dissesse que tem tempo — todo o tempo do mundo — pra ela.

GIUSEPPE - Eu não sou seu pai. Nem a sua mãe.
Mas juro, por tudo, que não vou te deixar.

MÁRCIA - (olha nos olhos dele, emocionada) Eu não quero juras. Quero que você fique.

Ele beija sua mão. Não há palavras. Só silêncio e promessas feitas com a pele.

A porta se abre discretamente. A incubadora passa pelo vão como uma carruagem de vidro. A bebê segue pequena, mas inteira. Envolta pela luz amarela do corredor, que a cobre como um milagre que não precisa se explicar.

CORTA PARA:

 

CENA 13 – POUSADA. QUARTO DE ERIBERTO E LAURINHA. INT. NOITE

SONOPLASTIA — “VLINDER VAN EEN ZOMER” – WILLEKE ALBERTI


A vitrola toca em volume baixo. A voz nostálgica e delicada da cantora holandesa parece vir de um tempo suspenso — como se o mundo ao redor tivesse esquecido de continuar.

A luz do quarto é cálida, âmbar, projetando sombras alongadas sobre a parede de pedras. O teto de madeira range discretamente com a brisa úmida de Paraty. É uma noite quente, sufocante, e tudo parece saturado — de silêncio, de desejo contido, de ressentimento.

Laurinha emerge do banheiro como uma personagem de um filme antigo: o robe de seda pêssego esvoaça, o cabelo ainda úmido escorre pelas costas, a maquiagem perfeita emoldura uma expressão que mistura doçura e cálculo. Ela flutua até a cama, deixando um rastro de perfume caro.

Eriberto está encostado em uma poltrona próxima da janela. A camisa semiaberta revela um peito tenso, braços cruzados, olhar duro. O copo de uísque está cheio — e intocado. Ele observa tudo como um juiz à espera do veredito.

LAURINHA - (doce, tentando leveza) O médico disse que Stella vai sobreviver. Talvez a gente tenha mais sorte que ela. (sorri, sussurrando) Talvez a gente ainda esteja no começo da nossa história...

Ela se aproxima, os pés descalços mal fazem som. Sua mão toca o ombro dele com uma delicadeza estudada, quase teatral.

Eriberto não se move.

LAURINHA - (baixinho) Vem pra cama, Eriberto. A gente já pecou. Agora é só continuar.

Um riso seco escapa de Eriberto — sem alegria, só ironia. Ele se levanta devagar, como um animal prestes a atacar ou fugir. Vai até a janela, onde a luz da rua desenha sua silhueta rígida contra a noite.

ERIBERTO - (sem olhar pra ela) Você acha mesmo que eu voltei aqui por amor? Você é inteligente, Laurinha. Finja que não ouviu o que vou dizer...

Laurinha se afasta um passo, os olhos fixos nele, mas sem perder o verniz da mulher que aprendeu a nunca baixar o queixo.

LAURINHA - (alerta) O que você quer dizer?

Eriberto gira nos calcanhares. Os olhos, que antes buscavam seduzir, agora ferem.

ERIBERTO - (afiado) Eu disse o que você queria ouvir. Como todo mundo faz com você. Só que eu sou diferente, Laurinha. Eu só preciso do seu dinheiro. Eu dormi com você. Mas dormir com alguém não quer dizer que a gente queira acordar com ela.

O impacto é seco. Quase audível.

Laurinha endurece o maxilar, mas mantém a postura. Nem um fio de cabelo se move. A herança europeia é visível: ela aprendeu a sangrar por dentro.

LAURINHA - (quase um sussurro) Você tá me usando?

ERIBERTO - (cortando, cínico) Agora que sei que seus filhos são meus, isso me garante uma boa contribuição de campanha. E você ainda vai ter que agradecer com champanhe por ficar quieto.

LAURINHA - (fria) Você me despreza, mas não consegue largar o berço de ouro. Você fala de mim, mas é igualzinho. Só que eu sou honesta. Nunca menti sobre o que eu queria.

ERIBERTO - (encarando) E o que você queria?

LAURINHA - (pausa) Você. Só você.

Um breve silêncio. A única testemunha é a canção de Willeke, girando na vitrola.

ERIBERTO - (feroz) Então escolheu o homem errado. Eu não sou de ninguém. Nunca fui. Nem da Stella. Nem seu.

Ela se recompõe. Fecha o robe com um nó firme, como se encerrasse um capítulo. A elegância permanece intacta — mas os olhos... aqueles olhos não perdoam.

LAURINHA - (suave, cortante) Você vai se arrepender. E quando se arrepender, eu vou estar linda. Com outro. E você, quebrado e sozinho.

Ela caminha até a porta com firmeza. Nenhum drama. Apenas precisão. Fecha a porta suavemente, como quem não precisa de ruído para deixar um estrondo.

Eriberto permanece imóvel. O copo ainda na mão. A vitrola gira. A chuva começa do lado de fora.

Vlinder van een zomer continua, como uma lembrança feliz que agora só machuca.

CORTE PARA:

CENA 14 – HOSPITAL DE PARATY. MATERNIDADE. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – “SEE YOU NEXT WEDNESDAY” – GAVIN SALKELD


Uma composição etérea, melancólica, que parece vir do fundo de um sonho ruim.

A chuva cai pesada lá fora. Gotas grossas escorrem pela vidraça, borrando o mundo exterior. Dentro da maternidade, o silêncio é espesso — como se o tempo tivesse sido suspenso.

Celste está sentada em uma poltrona bege, com o bebê de Márcia nos braços. Observa a criança com uma ternura ensaiada, como quem avalia uma joia rara — ou uma peça num tabuleiro. Seus olhos, porém, não estão no bebê. Estão em Bruno, parado do outro lado do vidro.

Bruno segura nos braços o bebê recém-nascido de Stella. O rosto dele começa a mudar. Primeiro, um franzir de testa. Depois, um terror contido. O silêncio do choro esperado — a ausência do som da vida — é um grito mudo.

BRUNO - (baixo, apavorado) Não (PAUSA) não, não...

Ele deita o bebê sobre uma mesa improvisada. As mãos tremem. Tenta reanimar com técnica e desespero. Uma, duas compressões. O silêncio da criança não cede. Só o som da chuva, e o da música que agora soa como um réquiem eletrônico.

BRUNO - (com a voz falhando) Celeste...

Ela se levanta, atravessa a sala com calma glacial. Vê o bebê imóvel. Vê o rosto pálido de Bruno.

BRUNO - (com a garganta seca) Ele morreu.

O mundo congela.

Celeste olha para o bebê morto. Depois, vira-se devagar e encara o bebê nos próprios braços — vivo, chorando baixinho.

Ela abraça a criança com força, como se calculasse algo muito maior que a dor. Seus olhos brilham — não de lágrimas, mas de uma fúria que já nasceu antiga.

BRUNO - (vacilando) Eu vou chamar alguém. Tem que registrar...

Celeste o agarra pelo pulso. As unhas cravam na pele dele. O gesto é pequeno — e brutal.

CELESTE - (firme, sem piscar) Não.

BRUNO - (confuso, assustado) Como assim, “não”?

Ela dá um passo à frente. O bebê ainda nos braços. Os olhos dela não choram. Eles decidem.

CELESTE - Vamos trocar os bebês.

BRUNO - (em choque) Celeste...

CELESTE - Ninguém precisa saber. O bebê da Márcia vai ser o filho da Stella.E o da Stella vai descansar. Como anjo. Como mártir. Como segredo.

Bruno recua um passo, como se estivesse diante de algo que não se nomeia. Mas não reage. Ele treme — e permanece imóvel.

Celeste beija a testa do bebê vivo. A música cresce.

A canção See You Next Wednesday ganha corpo. Distorcida, eletrônica, fúnebre. A cena é um pacto.

CORTA PARA:


A câmera sobe. A janela embaçada. A chuva lá fora continua a cair. E o mundo, sem saber, acaba de ser reescrito.

 

FIM

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