A OUTRA
CAPÍTULO 6
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1 – HOSPITAL DE PARATY. MATERNIDADE. INT. NOITE
SONOPLASTIA – “SEE YOU NEXT WEDNESDAY” - GAVIN SALKELD
Segue, agora em tom mais diluído, como um sussurro eletrônico que permanece no ar, como se o tempo não tivesse avançado.
O relógio mostra que adentramos a madrugada. O tic-tac quase se confunde com os bipes do monitor.
A chuva persiste lá fora, golpeando o vidro com insistência. A janela embaçada parece esconder o que o mundo não pode saber.
Bruno está de pé, paralisado. As mãos ainda sujas de sangue. O rosto lavado pelo suor e por uma angústia que ele não sabe nomear.
Celeste, com o bebê vivo nos braços, dá um passo para mais perto dele. Olhos fixos. Frieza absoluta. Ela está calma — porque o controle é dela.
CELESTE -(baixinho, porém límpida) Isso não é crime. (uma pausa, depois encara Bruno com intensidade) É uma narrativa.
Bruno desvia o olhar. Os olhos marejam. Ele encara o bebê morto, ainda deitado sobre a superfície de metal. Um pequeno corpo. Um silêncio ensurdecedor.
BRUNO - (com a voz embargada) Ele era meu filho.
CELESTE - (seco) E ainda é. (Sorri levemente, com ironia gélida)
Mas agora é um segredo.
Ela segura o bebê vivo com mais firmeza.
Bruno fecha os olhos. Um segundo. Dois. Quando os abre, já não há inocência ali — só o peso da escolha.
CELESTE - Você quer que ela morra de vez?
Quer que a Stella acorde e descubra que perdeu tudo? (Pausa) Ou quer que ela continue vivendo achando que venceu?
BRUNO - (baixo, dolorido) Eu não sei se consigo.
CELESTE - Mas já está fazendo. (Seca, direta) Já deixou de chamar alguém.
Já me deixou falar. Já tá dentro, Bruno.
O silêncio se estende como um lençol molhado.
O bebê vivo solta um gemido. Bruno o ouve como se fosse um tapa. Vai até a pia, lava o rosto com violência. Se encara no espelho.
CELESTE - (atrás dele, como um demônio gentil) Deixe que o tempo corrija a moral. Você salvou a Stella. E me deu de volta o futuro.
Ela caminha até a porta. Antes de sair, vira-se com um olhar calculado.
CELESTE - A história a gente escreve como quiser. E a verdade (Sorri, venenosa) A verdade é só o que se publica primeiro.
Ela sai. Bruno permanece no escuro. A câmera o filma de costas, curvado, derrotado.
A música retoma força por baixo, como um fio invisível de culpa e pacto.
CORTA PARA:
A janela. A chuva continua. Mas agora, chove sobre um mundo que jamais saberá o que realmente aconteceu.
CORTA PARA:
CENA 2 – POUSADA GUARANÁ. QUARTO DE ZILDA MARIA. INT. NOITE
SONOPLASTIA – A CHUVA MIÚDA PERSISTE. AO FUNDO, TOCA EM VOLUME BAIXO UMA VERSÃO INSTRUMENTAL DE “NERVOS DE AÇO”.
Zilda Maria está de robe de seda lilás, sentada diante do espelho, penteando os cabelos com gestos automáticos. O quarto é simples, mas cercado de relíquias: um piano fechado, tapeçarias que foram caras, um cinzeiro de cristal.
A porta se escancara.
Laurinha entra encharcada, descalça, com os sapatos na mão e a maquiagem borrada como tinta escorrida em tela molhada. Olhar assassino.
ZILDA MARIA - (nem se vira) Voltou da guerra? Ou perdeu mais uma batalha?
LAURINHA - (joga os sapatos longe) Ele me tratou como um erro de datilografia. Corrigível. E descartável. (pausa, amarga) E o pior demonstra prazer nisso.
ZILDA MARIA - (tragando) Homem rico humilha com sorriso. É o esporte preferido deles depois do golfe.
LAURINHA - (gritando)Ele disse que só queria o meu dinheiro! Que agora, com os filhos sendo dele, não precisa mais de mim. (sarcástica) Só das “contribuições”. Mensais. Sem recibo.
ZILDA MARIA - (se vira, gélida) Você confundiu orgasmo com contrato vitalício. (acende outro cigarro) E confundiu desejo com garantia estendida.
LAURINHA - (rindo sem humor) Obrigada, Zilda. Tá virando coach de viúva precoce?
ZILDA MARIA - (senta de frente, séria) Não, querida. Sou a prova viva de que eles nunca escolhem a rainha. Só a culpada.
LAURINHA - (afundando no sofá) Sabe o que eu decidi? Eu vou virar uma viúva. (rindo) Viúva do prazer. Viúva dos bons orgasmos. Do amor que nunca existiu.
ZILDA MARIA - (tragando, divertida) Arruma um luto com decote e pronto: vira mártir erótica.
LAURINHA - Mas antes (olhar de ódio cintilante) Eu vou me tornar a mulher que ele vai implorar de joelhos pra esquecer. Aquela que vai assombrar o casamento dele, cada ereção.
ZILDA MARIA - (ergue a sobrancelha, fumaça nos olhos) Cuidado. Toda vingança começa vestida de justiça e termina com você olhando no espelho e não reconhecendo o que virou. Se não prestar atenção, vai acabar tão parecida com que vai ter nojo do próprio reflexo.
Silêncio. As duas se encaram. Um pacto silencioso entre duas mulheres derrotadas demais pra chorar, e lúcidas demais pra esquecer.
CORTE PARA:
CENA 3 – HOSPITAL DE PARATY. SALA DE VISITAS. INT. NOITE
SONOPLASTIA – O SOM ABAFADO DE UMA TELEVISÃO LIGADA NUM CANAL DE NOTÍCIAS, ECO DE PASSOS NOS CORREDORES, TENSÃO SUSPENSA NO AR.
A porta se escancara.
Consuelo Albuquerque de Medeiros, impecável, elegante, feita de luxo e aço. Ela entra como uma tempestade que não grita — mas arrasa. Bolsa Hermès, coque perfeito, olhos vermelhos de chorar... e de ódio.
Celeste está sentada. Um copo de café na mão. A outra mão no controle da situação.
CONSUELLO - (seco, direto) Quero ver meu neto. Agora.
CELESTE - (sem levantar, sem ceder)Tem protocolo, Consuelo. Bebês em observação não recebem visitas.Muito menos ameaças disfarçadas de afeto.
CONSUELLO - (dá um passo à frente, gelo na voz) Não me provoca. Essa criança tem o sangue dos Albuquerque de Medeiros. Eu tenho direitos.
CELESTE - (olhos cravados nela, venenosa) Essa criança é um número no boletim médico. Por enquanto.
CONSUELLO - (controlando o tom, mas com veneno) Quando eu souber que ele está fora de perigo. Quero que venha comigo pro Rio. Comigo. E não com você.
CELESTE - (sorri, com um brilho ácido) Você quer um herdeiro, Consuelo. Não um neto. E no testamento da verdade, você é só uma nota de rodapé.
CONSUELLO - (afunda a raiva, mas não cede) Quando a Stella sair do coma, o jogo muda.
CELESTE - (levanta-se devagar, com o domínio de uma matriarca) Quando — e se — ela sair. Vai olhar pra esse bebê e enxergar esperança. Você vai olhar e enxergar uma ameaça.
Silêncio. Duas rainhas. Uma sala. Nenhuma intenção de recuar.
CELESTE - Ele também é meu neto. E ao contrário de você, eu não tenho vergonha do sangue que corre nas veias dele.
Close no rosto de Consuelo. Duro. Frio. Planejando. Seus olhos dizem tudo: a guerra está só começando.
CORTE PARA:
CENA 4 – PARATY. AMANHECER. EXT.
SONOPLASTIA – JE T’AIME... MOI NON PLUS – SERGE GAINSBOURG
A luz do sol nasce devagar por trás das montanhas de Paraty. O céu está dividido entre dourado e cinza — como se até o universo ainda decidisse de que lado está.
PLANO AÉREO
A cidade colonial desperta, molhada pela tempestade da noite anterior. As casas coloridas parecem dormir de olhos abertos. As pedras do chão brilham: polidas pela chuva e pela história.
CORTE PARA:
Fachada do Hospital de Paraty — marcada pela umidade e pelo peso do que ali se perdeu.
CORTE PARA:
INTERIOR DO HOSPITAL. CORREDOR VAZIO.
Um enfermeiro cruza em silêncio com uma incubadora. A câmera o acompanha lentamente, revelando um hospital desidratado de emoção — apenas ruído de ar-condicionado e respiração contida.
CORTE PARA:
SALA DA MATERNIDADE. INT.
Bruno está sozinho, encarando a janela, de costas para tudo.
A alvorada se insinua no vidro, mas o rosto dele é pedra.
Na mão, a manta do bebê que não sobreviveu.
Os olhos vermelhos. Mas não chora.
O luto dele é no maxilar contraído, no tremor do punho, no corpo em suspenso — como quem assinou um pacto com o diabo... e sobreviveu.
CORTE PARA:
QUARTO DE MÁRCIA. INT.
Márcia dorme, vencida.
Giuseppe está acordado, a seu lado, segurando a mão dela como quem segura o fio da própria sanidade.
Ao fundo, uma incubadora, iluminada por uma luz azul.
Ali respira a filha deles.
Ela vive.
Por ora, isso é tudo.
CORTE PARA:
SAGUÃO DO HOSPITAL. INT.
Celeste toma café preto, veste preto, pensa preto.
Encarando o nascer do sol com olhos de quem não espera redenção.
CELESTE - (baixo, um presságio disfarçado de certeza)
Agora começa o verdadeiro espetáculo.
A câmera sobe.
No céu, nuvens finas cortam o azul como cicatrizes recentes.
Paraty desperta.
Nada será como antes.
CORTA PARA:
CENA 5 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE MÁRCIA. INT. MANHÃ
SONOPLASTIA – “E DEPOIS DO ADEUS” – PAULO DE CARVALHO - INSTRUMENTAL
A música entra suave, solene — um sussurro de adeus.
O sol da manhã invade o quarto com uma luz trêmula, quase tímida.
Márcia está acordada, sentada na cama. Pálida, segura uma manta vazia — o vazio que ela não sabe como preencher.
Giuseppe está ao lado, o olhar fixo nela, buscando forças no silêncio.
A porta se abre devagar. Uma enfermeira entra, hesitante, como quem carrega um fardo pesado demais para si.
ENFERMEIRA - (com voz baixa, evitando o olhar) Dona Márcia, sei que a senhora está se recuperando, mas o doutor pediu que os chamássemos na sala da direção. É sobre a bebê.
MÁRCIA - (olha para Giuseppe, já tensa) O que houve? Ela estava estável...
GIUSEPPE - (engolindo seco) Vamos, então.
Eles se levantam, o medo crescendo em cada passo.
CORTA PARA:
CENA 6 – HOSPITAL DE PARATY. SALA DE DIREÇÃO. INT.
SONOPLASTIA – “E DEPOIS DO ADEUS” – PAULO DE CARVALHO – INSTRUMENTAL
Bruno está de pé, o rosto fechado, de costas para a porta. Celeste está sentada, imóvel — a frieza personificada.
A sala é austera, desprovida de calor. Só pastas, cadeiras e uma jarra d’água esquecida.
A porta se abre. Márcia e Giuseppe entram, com o corpo e a alma tensionados.
BRUNO - (se vira, voz carregada) Por favor, sentem-se.
MÁRCIA - (firme, sem se sentar) Fale logo, doutor.
BRUNO - (respira fundo) Durante a madrugada, houve uma parada respiratória. Tentamos de tudo, mas não conseguimos...
Silêncio absoluto. A música quase some. O vazio preenche o espaço.
MÁRCIA - (confusa) Mas ela estava bem...
GIUSEPPE - (com voz falha) Vocês querem dizer que ela morreu?
BRUNO - (baixinho, quase um sussurro) Sim.
Márcia permanece imóvel. O tempo parece ter parado. Seus olhos se perdem. A respiração falta.
De repente, um riso nervoso, quebrado, escapa. Ela se desfaz em soluços.
Giuseppe tenta ampará-la. Ela o empurra.
MÁRCIA - (chorando, gritando) Não! Ela estava viva! Eu a ouvi! Eu segurei! Ela chorou!
Celeste levanta a cabeça — fria como mármore.
CELESTE - (voz glacial) Às vezes o mundo não suporta os fortes. Este bebê, talvez não pertencesse a este lugar.
GIUSEPPE - (indo ao limite) Você está ouvindo o que está dizendo?
CELESTE - (firme, olhando-o nos olhos) Muitos nascem com más-formações nos órgãos. É uma fatalidade. A necropsia confirmaria. Mas. (olha para Bruno) Eu aconselho que dispensemos.
BRUNO - (evita olhar para Márcia) Infelizmente, complicações assim são comuns. Não há culpa. Foi má-formação.
MÁRCIA - (cai no chão, gritando de dor) Minha filha (PAUSA) minha filha...
Bruno tenta se aproximar, mas recua diante da intensidade do sofrimento.
Celeste permanece impassível — uma pedra no meio do mar revolto.
CENA 7. CORREDOR DO HOSPITAL. INT. DIA
SONOPLASTIA - SWAN LAKE – ACT II, NO. 10: SCENE (MODERATO) -TCHAIKOVSKY
O corredor é longo, frio, iluminado por fluorescentes que piscam em ritmo irregular, lançando sombras cortantes nas paredes brancas e gessadas.
O som abafado de passos ecoa, misturado ao zumbido do ar-condicionado e ao sussurro distante de conversas inaudíveis.
Uma enfermeira empurra uma incubadora com cuidado quase reverente. O vidro translúcido reflete as luzes frias, enquanto a criança repousa dentro, embrulhada em um silêncio frágil.
Cada movimento parece suspenso no tempo — o rangido leve das rodinhas no piso encerado, o tilintar distante de máquinas hospitalares, o perfume quase imperceptível de antisséptico misturado à umidade do corredor.
A câmera segue lentamente a incubadora, passando por portas entreabertas que revelam quartos silenciosos — camas vazias, cortinas esvoaçantes, memórias ocultas em cada detalhe.
Finalmente, a porta do quarto de Stella se abre, a luz do sol entra suave, dourada, tingindo o ambiente com um calor tênue e breve.
Dentro, o espaço está silencioso, mas não vazio: o ar carrega uma esperança silenciosa, um respiro delicado na tensão que domina o hospital.
A incubadora é posicionada ao lado da cama, onde a falsa mãe da criança descansa, inconsciente, alheia ao segredo que a envolve.
O silêncio é pesado, cheio de segredos, promessas e mentiras.
Nada denuncia a farsa.
CORTA PARA:
CENA 8 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE STELLA. INT. DIA
SONOPLASTIA — DOIS PRA LÁ, DOIS PRA CÁ – ELIS REGINA – INSTRUMENTAL
A luz tênue do fim da manhã invade o quarto com delicadeza. Um vaso com flores frescas repousa ao lado da cama, dando um toque de vida e esperança num cenário hospitalar. O quarto de Stella foi cuidadosamente arrumado para parecer um refúgio acolhedor, quase um lar.
Stella está sentada, apoiada em almofadas, o rosto mais corado, mas ainda marcado pela fragilidade. Seus olhos brilham com um misto de incredulidade e emoção.
Bruno entra, segurando cuidadosamente o bebê nos braços — a filha de Márcia, agora apresentado ao mundo como filha de Stella.
STELLA -(sorri, a voz embargada) Ele é minha mesmo?
BRUNO - (finge um sorriso, a voz levemente trêmula) É sua, Stella. Sua e do Eriberto.
Stella ri brevemente, lágrimas escorrem silenciosas. Ela tenta controlar o choro, mas o rosto se desfaz em emoção genuína.
STELLA -(voz baixa, quase um sussurro) Eu parí. E ela sobreviveu.
Depois de tudo. Depois de todas as confusões que criei e a coloquei em risco.
BRUNO -(fica ao lado dela, o tom contido) Ela é forte. Tem pulmão. Aguentou o que ninguém acreditava.
STELLA - (irônica, olhando o bebê com um meio sorriso) Ironia cruel da vida, né? Eu que fumei até o dia que dei a luz , bebia e tudo mais (ri) E ele aqui, firme. A outra, cheia de suco verde, yoga e planos bonitos. E olha no que deu.
Bruno engole seco, a tensão em seus olhos é quase palpável. Ele estende o bebê para Stella.
Stella o segura com cuidado, o rosto se ilumina em um raro momento de paz. Fecha os olhos, respira fundo, como se pudesse absorver a força daquele instante.
STELLA - (voz baixa, decidida)
Ela vai ter tudo, Bruno. Tudo que eu nunca tive. Porque ele será filha de um dos futuros Presidentes da República.
Ela encosta o rosto na cabeça do bebê, beija com ternura, plena.
Bruno permanece em silêncio, a respiração entrecortada. Seus olhos marejam, mas ele luta para segurar o choro — os ombros tremem, revelando o peso do segredo que carrega.
STELLA - (sussurrando, com um sorriso quase cúmplice) Você vai ser o padrinho, Bruno. Quero você perto dele. Sempre.
BRUNO - (tenta disfarçar a emoção, a voz baixa) Sempre.
Ele se aproxima, acaricia o rosto dela, e Stella, em um gesto inesperado, se inclina para sussurrar no ouvido dele.
STELLA - (sussurra, com um brilho nos olhos) Parabéns, papai, agora podemos pensar na próxima etapa.
Bruno permanece imóvel, o peso do que foi dito paira no ar, uma promessa silenciosa, uma ameaça velada.
A câmera se afasta lentamente da cena, capturando a tranquilidade frágil do quarto, contrastando com a tempestade oculta entre os dois.
CORTA PARA:
FRENTE DO HOSPITAL – EXT. DIA
A câmera sobe ao céu de Paraty, limpo e azul, um contraste cruel com os segredos escondidos sob o sol radiante.
CENA 9 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE STELLA. INT. DIA
SONOPLASTIA – “VLINDER VAN EEN ZOMER” – WILLEKE ALBERTI
O quarto é asséptico, mas tenta parecer humano. Paredes bege pálido, cortinas translúcidas tremulando com o vento do ar-condicionado. Um ramalhete de flores já murchas, esquecido numa jarra de plástico. O som do monitor cardíaco dita o ritmo da cena: pulsante, contido.
Stella, frágil, segura o bebê nos braços como se fosse a única âncora em sua vida. Os cabelos presos com um elástico de borracha, olheiras fundas, camisola de algodão barata.
Bruno está em pé, camisa fora da calça, gravata frouxa. O rosto diz tudo que ele não ousa dizer.
A porta se abre com um estrondo teatral.
Laurinha entra. Impecável. Calça branca de linho, camisa de seda azul-marinho, maxibolsa Hermès pendendo no antebraço. Batom nude e olhar letal.
Ela caminha como quem está em casa.
LAURINHA - (com um sorriso entalhado em veneno)Ah, que composição emocionante. A mulher ferida e sua redenção em forma de fralda. Renoir não pintaria melhor.
STELLA - (sem levantar os olhos) Laurinha, você não tem um jantar de milionários pra arruinar?
LAURINHA - (rindo) Tive um cancelamento de última hora. E achei de uma delicadeza imperdoável não vir conhecer a nova irmãzinha dos meus filhos.
BRUNO - Laurinha, não é o momento.
LAURINHA - Para delicadeza, Bruno, você chegou tarde. (olhando para o bebê, depois para Stella) Mas preciso admitir: você venceu. Um filho vivo. Parabéns. Apesar da cirurgia dramática.
STELLA - (levanta os olhos, gelada) Você não veio dar parabéns. Veio mostrar os dentes.
LAURINHA - (se aproxima, quase em sussurro) Dentes? Não, querida. Isso seria vulgar. Eu prefiro lâminas escondidas em palavras doces.
STELLA - (deboche) Então vamos lá. Me rasgue com poesia.
LAURINHA - (senta-se na poltrona como se fosse dela) Soube — por vias absolutamente antiéticas, claro — que sua cesariana foi épica.Te salvaram no último instante. Mas deixaram um preço. Alto. (sorri)Você foi desabitada, Stella. Vazia. Um útero a menos.
STELLA - (finge frieza, mas as mãos tremem) Eu sei. E sigo aqui.
LAURINHA – (satisfeita, olhando para o bebê com um meio sorriso) Sim. E com um troféu nos braços. Único. Insubstituível. (pausa; ela se aproxima da cama, baixa a voz como se fosse confidência) Que ironia, Stella. A mulher que encantou salões, que transformou um sobrenome em moeda de ouro (toca suavemente no lençol, fingindo empatia) Mas agora, justo agora, o que era abundância virou limite.
Essa será sua única filha. E o fim da sua linhagem começa nela.
Silêncio longo.
BRUNO - (voz firme) Laurinha, por Deus.
LAURINHA - (olha para ele, ríspida) Não invoque Deus num hospital. Ele tem coisa mais importante pra fazer.
STELLA (agora, firme) Você fala como se isso te desse prazer. Como se eu tivesse perdido.
LAURINHA - Você perdeu. Mas também ganhou. (aponta o bebê) Só espero que ela herde o seu instinto de sobrevivência e não o gosto pelos mesmos homens.
STELLA - (fina) Não se preocupe. Se ela crescer com a sua classe, eu a mando pra adoção.
LAURINHA - (ri, levanta-se) Ah, Stella, você aprendeu. Está começando a falar como gente grande.(toca no ombro dela, suavemente) Mas lembre-se: essa filha aí é o que te resta.
E, se for mesmo de Eriberto, carrega nele o que você nunca poderá mais dar.
STELLA - (faísca nos olhos) Ela é minha. E isso já basta pra te doer.
LAURINHA - (sorriso gélido) A dor é sua. Eu só passo para lembrar.
Ela se vira. Caminha lentamente, os saltos marcando cada palavra não dita.
LAURINHA - (antes de sair, sem olhar pra trás) Morrer teria sido um fim digno. Mas, conhecendo você, é claro que escolheu viver.
Porta se fecha com precisão cirúrgica.
Stella fica. Os olhos brilham, mas não chora. A música sobe. O monitor cardíaco se acelera. Ela aperta o bebê no peito, como se dissesse: "você é o que me resta — e é tudo."
CORTA PARA:
FIM
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