A OUTRA
CAPÍTULO 7
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE STELLA. INT. DIA
Luz fria, impessoal. O ambiente tem o silêncio sufocante dos hospitais. Uma televisão antiga, ligada no mudo, exibe um telejornal genérico. A estética é quase de um mausoléu branco.
Stella, deitada na cama, ainda frágil, está acordada, com os olhos alertas e uma fúria contida. Ela é mulher de luxo e ambição, de beleza altiva mesmo sem maquiagem. Amante de Bruno que está ao seu lado — e também seu padrasto.
Bruno, num terno de corte impecável, parece menor diante da intensidade dela. Seu ar de culpa mistura medo e arrogância. É o tipo que paga pra não se sujar — e se suja mesmo assim.
BRUNO - (baixo, defensivo) Eu só queria esperar você melhorar, Stella. Estava tudo muito recente, a filha da Márcia. A tragédia. Achei que não era hora...
STELLA - (interrompe, mordaz) Não era hora ou não era conveniente? (pausa curta) E poupe o teatro, Bruno. Dizer que uma criança morrer é "menos uma boca pra alimentar" não é luto. É vileza.
BRUNO - (tenta conter o nervosismo) Você está distorcendo.
STELLA -(afiada, cortante) Estou vendo com clareza. Vocês me enganaram, Bruno. Você e sua adorável cúmplice de véu e rosa.
A porta se abre. Celeste entra — impecável, uma matriarca de ferro, o tipo de mulher que toma café com ameaças e usa Chanel nº5 como armadura. Ela é mãe de STELLA, mas raramente age como tal.
CELESTE - (olhando de um para outro)
O que está acontecendo aqui?
STELLA - (gelada) Acontecendo? Descobri que meu marido e minha sogra acham que perder um útero é motivo pra me esconder verdades.
CELESTE - (espantada) É isso? Todo esse chilique... por causa de um útero?
STELLA - (sarcástica) Claro, porque o seu filho ainda tem a dele, né? Fácil falar.
CELESTE -(aproxima-se, implacável)
Stella, seja adulta. Você perdeu o útero, não a inteligência. (senta-se ao pé da cama) O mais importante você tem: uma filha, com o nome e o sangue de um Albuquerque de Medeiros. (pausa seca) E um casamento. Que muita mulher aceitaria em silêncio, só pra não voltar pra kitnet de onde veio.
STELLA - (olhar fulminante) Eu não sou "muita mulher", Celeste. E você devia saber — foi você quem me ensinou a mirar alto.
CELESTE - (levanta-se, firme) Então mire. Mas mire direito. Porque se você atirar contra Bruno agora, o tiro pode voltar.
(e sai, com elegância e ameaça implícita)
Stella permanece imóvel. Bruno tenta se manter em pé, mas desvia o olhar. O silêncio é pesado como chumbo.
CORTE PARA:
CENA 2 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE STELLA. INT. DIA
SONOPLASTIA – “ABRAZAME ASÍ” – ROBERTO CARLOS, TOCANDO BAIXO, COMO UM LAMENTO
O quarto está mergulhado numa penumbra suave, cortada apenas pela luz natural que entra pelas persianas semiabertas. Há um sofá discreto encostado à parede. MARCIA e GIUSEPPE estão sentados ali, lado a lado, os corpos próximos, as mãos entrelaçadas num gesto de consolo silencioso.
Giuseppe encara o chão, sem palavras. MARCIA, com os olhos úmidos, respira fundo e rompe o silêncio:
MARCIA - (voz embargada, mas firme) Dizem que a dor é igual pra todo mundo. Que perder um filho dói do mesmo jeito pra mãe e pro pai. (pausa, olhando pra frente) Mentira. A gente sente diferente. Porque é na gente que cresce. Porque é a gente que sabe, desde o primeiro enjoo, que aquilo ali nunca mais vai sair da gente.
Giuseppe aperta levemente a mão dela. Não responde. Apenas escuta.
MARCIA - É como se arrancassem uma parte do que a gente é com unha. Sem anestesia.
O silêncio pesa. A trilha sonora preenche o espaço como se fosse o próprio choro que não sai.
A porta se abre sem cerimônia.
Celeste entra com sua habitual elegância, mas há um leve sorriso de desdém nos lábios — como se o sofrimento alheio fosse uma peça que já viu mil vezes.
CELESTE - (observando o casal com falsa gentileza) Vejo que estamos todos sensíveis.
Márcia se levanta, instintiva, protetora.
CELESTE - (sem paciência) Guarde suas lágrimas, Márcia. A dor não dá status, e o luto não compra poder.
Giuseppe levanta também, ofendido. Mas CELESTE já se aproxima de STELLA, que observa tudo da cama, em silêncio.
CELESTE - (para a filha, fria) Preciso de um favor seu.
Olhares cruzados. Um silêncio tenso.
Celeste dá meia-volta com a altivez de quem já decidiu tudo, mesmo antes da resposta.
CORTE PARA:
CENA 3 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE STELLA. INT. DIA
SONOPLASTIA – INVERNO – VIVALDI
A câmera acompanha Celeste enquanto ela entra no quarto com uma expressão serena, quase maternal — mas seus olhos carregam um brilho gélido, estratégico.
Márcia, ainda frágil, está sentada ao lado da janela. O quarto é iluminado por uma luz natural filtrada por cortinas claras. O choro abafado de um bebê ecoa ao fundo.
Celeste se aproxima e, como quem oferece um presente, deposita a bebê nos braços de Márcia — que hesita, mas acaba aceitando.
Márcia observa a criança com uma ternura devastadora. Seus olhos se enchem de lágrimas antes mesmo de perguntar:
MÁRCIA - (com a voz embargada) Já escolheram o nome?
Celeste, fria, responde:
CELESTE — Ainda não.
A resposta seca é um soco no ventre de Márcia, que, desarmada, segura a bebê com cuidado, como se temesse quebrá-la. Ela começa a chorar silenciosamente — choro que não é só de dor, mas de identificação, de perda, de culpa.
MÁRCIA — Ela podia ser minha...
Celeste sorri, venenosa. A crueldade vem disfarçada de ternura:
CELESTE — Se você gosta tanto assim da sua irmã e da sua sobrinha, devia fazer algo para manter a menina viva. Ela tá rejeitando o peito da Stella.
Márcia estanca. O olhar vai de Celeste para a bebê e volta. Há um silêncio que dura mais que o necessário. A música preenche o ambiente como uma ironia barroca.
A câmera fecha em Celeste: um busto de frieza e cálculo. Em Márcia: o rosto devastado, mas algo dentro dela se acende. Uma fagulha de conexão. De instinto. De entrega.
Ela aproxima a criança do colo. A bebê se aquieta. Chupa os dedos. Encontra abrigo. E Márcia, mesmo sem dizer nada, se deixa amar por aquela sensação.
CORTA PARA:
CENA 4 – HOSPITAL DE PARATY. JARDIM INTERNO. EXT. DIA
O jardim do hospital exibe uma beleza discreta e bem cuidada. Arbustos podados com precisão, bancos de madeira sob a sombra de árvores frondosas e o som longínquo de pássaros contrastam com a tensão sutil que paira no ar. A brisa fria do litoral corta o calor do dia, obrigando os presentes a manterem os casacos bem fechados.
Consuelo, sentada rigidamente em um banco de pedra, observa o entorno com um desagrado silencioso. Sua postura revela impaciência e orgulho ferido. Está claramente incomodada com a demora para conhecer a neta. Ao lado dela, Eriberto mantém uma expressão controlada, com um leve sorriso cínico nos lábios — o tipo de homem que nunca relaxa totalmente, mesmo diante da própria mãe. De pé entre os dois, Stella, sóbria, impecável, esbanja autocontrole. Sua voz doce, sempre ponderada, mascara sua natureza ambiciosa: é uma verdadeira "Maria de Fátima" dos tempos modernos — leal às aparências, mas sempre com um plano oculto.
CONSUELLO - (com desdém mal disfarçado) Até agora não conheci minha neta...
Eriberto faz um gesto calmo com as mãos, tentando apaziguar, mas seu olhar entrega tédio e desprezo. Stella intervém com uma serenidade estudada, mas antes que diga qualquer coisa, Consuelo se volta a ela.
CONSUELLO - (mais terna) Queria fazer um pedido: que a criança se chame Marisa, como a minha avó querida.
Segue-se um breve silêncio — não de comoção, mas de cálculo. Eriberto ergue uma sobrancelha e lança a provocação como quem atira uma taça de cristal no chão, apenas para ouvir o som da quebra.
ERIBERTO - (irônico, mordaz) Foi essa que deu o golpe da barriga que fez a família ficar rica?
Consuelo permanece imóvel. Sua reação é a indiferença estratégica — já aprendeu a sobreviver a esse tipo de escárnio. Eriberto gargalha com gosto. Um riso curto, venenoso, feito para ferir.
Stella, com um sorriso que mistura empatia e cálculo, aceita a sugestão do nome sem hesitar. Ela olha para Consuelo como quem oferece uma dádiva política, não um afeto sincero.
STELLA - (com solenidade e doçura) Marisa é um nome com força. Vai trazer raízes. E futuro. Nome de mulher decidida. Perfeito para a filha de um homem que ainda vai ser presidente...
Eriberto se delicia com a bajulação velada. O vento se intensifica, e ele puxa o casaco para mais perto do corpo. Faz um gesto elegante com a mão, encerrando a cena como quem conduz uma peça teatral.
ERIBERTO - Vamos. Está gelado aqui fora.
Os três caminham lentamente de volta ao hospital. A câmera os acompanha pelas costas, captando o vaivém das folhas ao vento e a luz do sol filtrada pelas árvores. O nome da criança ecoa silenciosamente, carregado de promessas, alianças e espectros familiares.
CORTA PARA:
CENA 5 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE STELLA. INT. DIA
SONOPLASTIA – “INVERNO” – VIVALDI
Luz suave atravessa as persianas do quarto. A atmosfera é silenciosa, quase sagrada.
Márcia está sentada em uma poltrona ao lado da cama, o bebê aninhado em seus braços. Ela o amamenta com delicadeza, em um gesto repleto de amor e entrega. Seus olhos estão marejados, mas firmes. Um vínculo visceral, imediato, quase inexplicável.
Celeste observa tudo a poucos passos de distância. Imóvel. Seu olhar é de puro escárnio silencioso. Ela se diverte com a cena, como quem assiste a uma peça montada por ela mesma. Um leve sorriso atravessa o canto de sua boca — ela saboreia a ironia cruel de tudo aquilo.
A porta se abre com certa pressa.
Consuelo entra, ansiosa, ofegante, carregada de expectativa.
Ao ver a cena diante de si — Márcia amamentando — ela congela.
Consuelo - (baixa, chocada) O que é isso?
Stella, que está de pé ao lado de Eriberto, também se espanta. Seus olhos se arregalam, sua expressão é de incredulidade e desconfiança. O silêncio no quarto é cortante.
Stella - Márcia, querida, em que momento você confundiu minha filha com a sua? Pelo que sei, a sua está no necrotério, mas essa aqui (olhar gélido) essa aqui está viva, e no seu colo.
CORTA PARA:
FIM
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