O terror, o horror e o maldito melodrama!
…
Talvez o suor estivesse bastante nítido em meu rosto. Era um suor de nervoso, de aflição e de medo. Sim, medo. Não podia me dar o luxo de deixar de senti-lo em horas como essas, que já faziam parte do meu futuro antes mesmo dele chegar.
George entrou sem pestanejar. Ele me olhava meio triste, como se tudo tivesse dado errado e ainda mais problemas vindo em minha direção. Estava me assustando mais a cada segundo que passava, confesso.
— Fala logo, George! Despeje logo toda essa maré de notícias ruins em cima de mim, eu aguento! — Tratei logo de iniciar meu santo drama de todos os dias. Acho que vou começar a encomendar madrinhas para minha história a lá Maria do Bairro!
— Mark, eu sinto muito… eu tentei de tudo para conseguir algo pra você lá, mas não deu. O chefe é muito rígido, ele deve saber quem você é… digo, deve saber o que você passou! — Eu definitivamente não iria deixar aquela notícia ruim me abalar. Não mesmo!
Tratei de erguer a minha cabeça e usei o que havia desenvolvido de melhor nesse tempo: a força. Respirei fundo e olhei para George no fundo dos olhos.
— Não tem problema. Sinto por não conseguir, mas com certeza no futuro eu encontro outro até melhor. — Disse, convencido de que essa humilhação estava prestes a acabar.
— Você queria mais de uma notícia, não é? Eu tenho outra, que provavelmente você vai adorar! — Meu coração esquentou. Um sorriso involuntário se abriu em meu rosto. Estava ficando radiante! — Você sempre quis morar naquela locadora que tinha lá perto de casa…
— Espera… — Tive que interromper. — Aquela locadora ainda existe? Eu achava que o Sr. Joseph não iria insistir mais no negócio depois de perder tanto espaço no mercado!
— Pode ter certeza que existe, e mais frequentada do que nunca! — Ele abriu um sorriso bem alegre que me contagiou. — Bem, ela não existe no mesmo lugar, agora é no centro porque o novo proprietário resolveu a demolir em nome de uma loja de celulares. Mas voltando ao assunto, eu consegui uma das vagas de lá pra você. — Sem pensar, dei vários pulos de alegria. Meus braços iam e voltavam de cima a baixo e George só fazia se contagiar com minha alegria. Era nítido o quanto estava precisando de uma notícia assim, e ele fez questão de me ajudar além do que tinha prometido.
— Eu não acredito que você conseguiu essa proeza! Meu sonho era assistir todos os filmes daquela locadora! — Disse, sem fazer cerimônia.
— Você amava aquele lugar mesmo. A sua seção favorita sempre foi a de terror, o maior tempo você gastava vendo aquelas capas assustadoras! — Ele lembrava! Todas as vezes que fui na Final Films, George quem me levava e deixava eu escolher dois filmes no meio daquela infinidade de mídias.
— Mas é claro que sim! Eram todas muito criativas e instigantes. Lembro até hoje do dia que descobri a existência do homem da máscara de hóquei, fiquei fissurado na franquia inteira por bem uns dois meses! — Era verdade.
Nesse dia eu tinha acabado de voltar da escola. Estava cansado, mas não existia algo que me fizesse deixar de ir na locadora. George amava me levar lá, ele ficava feliz com minha felicidade e eu sentia orgulho de chamá-lo de pai. Assistir filmes com ele era como entrar em um mundo alternativo onde a diversão reinava absoluta.
Infelizmente às vezes esse mundinho era invadido por Christine, ela fazia questão de esfregar na minha cara o quão aquilo tudo era superficial e o quanto ela não ligava pra nada em relação a mim. Ela simplesmente quebrava os DVD's da forma mais sórdida e cruel possível. Na minha visão aquilo era como o Freddy Krueger invadindo os sonhos dos jovens para dilacerá-los sem dó nem piedade usando as garras de ferro.
— Qual o seu filme de terror preferido? — Disse George, sorrindo cinicamente e fazendo eu me sentir em um certo filme de Wes Craven. Tive que acompanhá-lo nas risadas.
— Meu deus, que saudades de tudo isso! — Um sentimento enorme de nostalgia estava tomando conta de mim.
Quando você é adulto, todas as horas são como pássaros: vão e voltam rapidamente, elas literalmente voam. Seus problemas, sendo eles em qualquer área, são tantos que no fim do dia só lhe resta tempo para comer e dormir. Você sente falta daquilo que tinha em si mesmo e menosprezava em prol de um avanço sem muita importância no que diz respeito à felicidade.
Eu passei tanto tempo sendo obrigado a lembrar dos meus problemas e de como resolvê-los, que esqueci de pontos do meu passado que me faziam bem e que com certeza são válidos no meu momento de agora. O gosto peculiar por filmes na infância, por exemplo. As crianças geralmente preferem animações, filmes bobinhos, histórias de super-heróis… eu preferia levar sustos. Eu gostava da sensação de sentir como se a qualquer momento tivesse que correr de um homem com um machado.
Até que chegou esse dia. E eu não corri. Talvez se tivesse corrido, minha vida não me pertencesse mais. Talvez eu teria tropeçado em alguma cadeira sem chances de defesa. Talvez os ensinamentos da única pessoa que abraçou todos os meus medos e me fez superá-los não tivessem valido de nada.
A nostalgia era forte: pela diversão de assistir filmes de terror de maneira inocente, sem precisar presenciar a ficção na vida real com apenas dezesseis anos, e pelo próprio universo ficcional que uma criança pura criara em sua mente brilhante, fértil e saudável para protagonizar com seu pai, o único super-herói da sua vida.
— Você vai poder revisitar essa parte do seu passado, Mark. E vai ser todos os dias! — Disse ele, me enchendo o coração de alegria.
— Você acha que eu vou me dar bem nesse emprego? Diga com sinceridade! — Ele me olhou assustado. Eu tive que perguntar. Não queria que essa reconexão começasse com palavras falsas e superficiais. Queria ver até onde ele iria com as próprias pernas, sem precisar de uma série de palavras do vocabulário de Christine.
— Eu… é... eu tenho certeza. Você sempre foi um garoto esperto, curioso e inteligente, desde aquela época que a gente ia na locadora e você escolhia os melhores filmes. Vai tirar de letra! — Essas não me pareciam palavras que Christine me diria, então tratei logo de abrir o meu melhor sorriso, respirar fundo com um alívio imenso e agradecer com a cabeça.
Me senti mega contente em ouvir essas palavras. Ficava feliz em saber que ao menos algumas pessoas não me viam como um fracassado sem expectativas.
A conversa não se estendeu por muito tempo e ele foi embora, se limitando a apenas dizer que meu primeiro dia seria daqui há uns cinco dias. Em partes a relutância de George vinha do fato de que sua posição era difícil. Eu entendia, claro, mas também não poderia deixar de me entender e no meu lado egoísta achar uma covardia essa situação.
Mas se teve uma coisa que me deixou ainda mais feliz, essa coisa foi uma revelação dele: as cartas que minha irmã me mandava eram todas enviadas por ele. Ele fazia a ponte entre eu e ela esse tempo todo e, apesar de ter suspeitado por já o conhecer muito bem, fiquei surpreso e emocionado internamente. Mais uma prova de que ainda restava algumas esperanças.
…
O relógio já marcava duas e meia da tarde. Natalie sempre chega perto das sete da noite, então resolvi testar meus dotes culinários e preparar um enorme banquete para ela. Estava fazendo frio, exatamente por isso queria fazer algo que a esquentasse bem, tipo… uma sopa bem clichê!
Peguei meu celular, que aliás já estava bem equipado com uns apps para ouvir minhas músicas favoritas, e abri um deles. Chama Spotify e é pago. Eu não queria, mas a tia Natalie que insistiu bastante para assinar, disse que era uma das suas maiores vontades há tempos. Tive que conectar o bluetooth no aparelho de som, quase que não acerto fazê-lo. A música que escolhi era uma que já conhecia há muito tempo, inclusive era uma das minhas preferidas de todos os tempos.
Foi apenas um clique e os acordes de violão ou guitarra, que eu não tinha certeza entre os dois, de We Are Never Ever Getting Back Together já ecoava por toda a casa e até lá fora. Peguei o avental de pano e o amarrei na minha cintura. O som era contagiante e eu tive que ir dançando até a geladeira. Peguei todos os vegetais que vi por ali, junto com algumas carnes e corri até o balcão.
Os preparativos do jantar já estavam começando e eu me animei ainda mais assim que o refrão da música iniciou: tive que rebolar sem parar, como nunca tinha feito antes. Pulei, fiz o cabo da faca de microfone e a performance já estava toda armada. Liberei todas as minhas energias como se estivesse em um palco real. A felicidade tomou conta de mim, mas ela sofreu uma freada brusca assim que virei meus olhos para a porta da cozinha e enxerguei Mitchell boquiaberto e segurando sua risada.
Minha vergonha estava ultrapassando níveis estratosféricos. Se ele queria alguma coisa comigo, de hoje em diante essa vontade vai sumir pra nunca mais voltar, tenho certeza.
— Meu deus do céu! — exclamei, extremamente envergonhado. Meu rosto estava queimando, provavelmente vermelho igual a um tomate.
— Seu rosto está praticamente explodindo de tão vermelho! — Ele não aguentou segurar a risada, e as gargalhadas foram altas. Eu juro por deus que vou jogar uma panela na cara dele se ele não parar de rir agora.
— É… pelo amor de deus, para de rir! Eu só estava… então… eu só estava cantando um pouco. — Ele riu ainda mais. Eu estava prestes a enfiar a cabeça dele em uma panela de água fervendo.
— Você está a própria Taylor Swift performando em algum programa de culinária! — Que merda! — Aliás, belo rebolado, loirinha!
— Eu vou socar a sua cara, Mitchell. Você vai ver só! Para de rir, inferno! — Fui até o celular em cima da bancada e dei um pausa na música.
— Com o quê? Com esse microfone improvisado aí? — A risada dele por um breve momento me contagiou quando prestei atenção nela. Até isso ele tinha de bonito. — Tá bem, eu paro de rir. Mas pode ter certeza de que nunca vou esquecer essa bela cena digna de um Grammy.
— Eu duvido que você faça melhor. Não tem ninguém que supere o meu rebolado!
— Ah, mas pode ter certeza que eu faço sim. Treino todos os dias em casa, na cozinha principalmente. É só você chegar algum dia de surpresa e verá o que é um rebolado de verdade! — Ah, mas eu iria pagar pra ver. E não somente pela competição, se é que estou sendo claro o bastante.
— Eu vou pagar pra ver, Mitchell. Qualquer dia desses eu chego lá pra te dar um susto! — Eu estava mais descarado do que nunca. Não sei se não estou sendo direto o suficiente ou se ele é inocente demais. — Mas me conte, Natalie está te pagando para me vigiar agora, é?
— Quem dera estivesse, mas aquela ali é uma mão de vaca! Estou aqui por conta própria, tive que ver como você está e dei sorte de te encontrar nessa situação. Estava precisando rir mesmo! — Idiota.
— Foi a primeira e última vez. Não pense que esse privilégio vai se repetir. — Ele sorriu e se aproximou mais.
— O que você está fazendo aí? Na verdade eu vim pra te ver e te fazer um convite! — Hum, agora fiquei curioso.
— Eu estou fazendo sopa. A melhor do mundo, aliás! E que convite seria esse? Olha lá, hein, Mitchell? Não vai querer me levar para o submundo da perdição em Failland. — Ele sorriu mais uma vez e me olhou.
— Na verdade, a melhor sopa do mundo é a minha, mas se você diz que é a sua… vamos ter que competir! — Ele me fez sorrir. Tive que concordar com a cabeça, pois essa competição já estava marcada. — Eu queria que você fosse em uma festa comigo. Vai ser ótima, o pessoal da minha faculdade vai estar em peso lá. — Meu coração começou a bater rápido. Na verdade, só de imaginar sair para uma festa cheia de gente me dava receio.
— Eu não sei, Mitch. Talvez não seja uma boa ideia, a cidade inteira me detesta por algo que nem fiz. Seria muito audacioso da minha parte fazer isso, é pedir pra ser humilhado! — Seu sorriso se desfez e eu senti uma pontada no fundo do meu coração ao vê-lo sério.
— Mark, escuta bem, eu entendo seu medo, mas não faz sentido que em pleno século vinte e um você tenha que se esconder para sobreviver, ainda mais por causa de coisas que você nem teve culpa. — Ele parecia mesmo estar do meu lado.
— E como você tem tanta certeza de que eu não fiz? — Questionei, direto.
— Tenho tanta certeza porque confio em você, confio no que você já me demonstrou até agora e na minha balança. Eu a usei, Mark. Eu sei bem como essa cidade puxa o saco desse juiz maldito e do filhinho mimado dele. — Agora fiquei totalmente intrigado. O Mitchell tem razão sobre o juiz e Matthew, mas ele fala de um jeito que parece que já fez parte desse meio!
— Como você pode falar com tanta convicção sobre eles? Parece que conhece há muito tempo!
— Porque eu realmente os conheço, Mark. Eu já convivi com o tal Matthew, eu já dormi no mesmo quarto que ele na minha antiga faculdade! — Tá bem, aquela revelação me pegou de surpresa.
— Por que você não me contou isso antes? Eu… pensei que estava sendo totalmente honesto comigo! — Não pude deixar de me sentir um pouco mal por conta daquela omissão.
— Não te contei porque não queria que você ficasse cheio desse assunto. Olha só o quanto ele te machuca, você fica vulnerável e nessa situação você precisa ser forte como vem sendo e encarar isso de frente. E de qualquer forma estou te contando agora, então não admito que você insinue qualquer desconfiança ao meu respeito! — Ele foi direto de uma forma que fez minha mente dar um enorme estalo.
Eu estava sendo auto-centrado demais, ao ponto de não perceber que ele queria apenas me proteger. É curiosa a maneira que uma sociedade faz você desconfiar de tudo e de todos, mesmo que haja alguém querendo o seu bem tão nitidamente. Me senti mal, meu olhar já estava caído e eu não conseguia o encarar.
— Me desculpa, Mitch. Desconfiar pra mim já é uma obrigação, eu preciso aprender a deixar isso de lado com quem me quer bem! — Um nó na minha garganta estava se formando e meus olhos se encheram de lágrimas. Estava muito desapontado comigo mesmo.
— Ei, não fique assim. Tá tudo bem! — Sua feição era de preocupação.
E mais uma vez ele me abraçou. Abraçou forte. E mais uma vez também me consolou de uma maneira mágica, era como se um mísero toque dele me fizesse o maior bem do mundo. Retribuí o abraço com uma intensidade enorme, e ele me apertou ainda mais forte.
— Eu só quero o seu bem, Mark. Eu quero ver você em paz, quero te ver rebolando igual um louco na cozinha, quero ver você usando esses dotes numa pista de dança em uma festa sem se importar com as pessoas ao redor… é isso que eu quero! — Ele não era humano. Tenho certeza que Mitchell veio de algum outro planeta tendo a perfeição como característica.
O abraço se desfez bem lentamente e eu enxuguei minhas lágrimas. Me senti aliviado e ele entendeu isso tão bem que sorriu.
— Eu vou nessa festa, mas preciso falar com Natalie antes, senão ela me mata antes de qualquer outra pessoa. — Ele abriu um sorriso ainda maior e concordou com a cabeça.
— Eu não vou deixar alguém tentar qualquer coisa contra você, Mark. Vai dar tudo certo, pode confiar! — Me encorajou, fazendo meu sorriso se abrir como o de uma criança em um parque de diversões.
Meu celular tocou bem nesse momento. Era Natalie. Ela queria saber se estava tudo bem comigo e passou vários minutos conversando com o Mitch. A amizade deles era muito bonita, parecia que se conheciam há anos.
O restante da tarde passou bem rápido. Eu queria que tivesse demorado, mas infelizmente tudo que é bom dura pouco. Mitch teve que ir embora, mas antes me ajudou com a sopa e me deixou bastante surpreso com suas técnicas culinárias, confesso. Ele realmente não tinha cara de quem sabia de tantos segredos e manhas daquela área como demonstrou ter. Aliás, ele ficou de vir me buscar às oito em ponto da noite. Tinha bastante tempo pra me arrumar, afinal eu não queria fazer feio nessa festa.
…
Era noite. Natalie já havia chegado e, no momento que estávamos nos deliciando com aquela maravilha de sopa preparada por mim e pelo Mitch, tive a brilhante capacidade de ficar nervoso diante de um simples jantar. Na verdade estava com receio de comentar sobre a festa, e ela percebeu que havia algo de errado, porque não parava de me olhar intrigada.
— O que aconteceu, Mark? — Ela foi direta, contrariando todas as minhas expectativas de começar um papo calmo e, na medida do avanço, falar que iria sair com Mitchell.
— Eu? É… não… realmente não aconteceu nada, tia. Eu só tô receoso de te comunicar uma coisa… — Iniciei, com medo. Ela me fuzilou com olhares cerrados e maxilar torto.
— Comunicar o que? Você tá bem? Te fizeram alguma coisa? É isso? Eu estou ficando nervosa, Mark fala logo! — Notei suas mãos inquietas. Ela não parava de colocar a unha do polegar debaixo da unha do dedo anelar a fim de fazer um pequeno estalo.
— Não. Não é isso, pode ficar tranquila! — Seria isso se o papo fosse sobre coisas ruins, mas resolvi ocultar dela o que aconteceu no shopping desde o ocorrido para não a preocupar sem necessidade. — É que… o Mitchell me convidou para uma festa, e eu estou querendo ir! — Ela me olhou ainda preocupada.
— Eu não sei, Mark. Eu realmente não sei se você ainda está preparado para frequentar festas, não aqui nessa cidade. Fico com medo de te acontecer algo! — Eu entendo perfeitamente, porque também sentia medo o tempo inteiro, e esse medo tinha fundamentos!
Na prisão recebi várias cartas suspeitas, mas uma em especial tinha me chamado a atenção. Era uma de natal, mas não era qualquer carta clichê de felicitações ou desejos de coisas boas. Era uma carta com teor de ameaça que fez eu me sentir em um filme de terror. Não sei quem mandou, até tentei descobrir, mas as autoridades estavam nem aí pra mim. Inclusive esse é outro ponto que me intriga até hoje: eu fui preso por causa de uma história distorcida propositalmente, recebia ameaças, mas ninguém fazia nada. Eu podia morrer que eles iriam enterrar e pronto, sem mais conversas.
Às vezes sinto em mim um desejo de fazer justiça por conta do que fizeram comigo, mas nem me atrevo porque sei que seria inútil tentar. Estão todos do outro lado, até a justiça. Belo nome para uma porcaria de sistema comprado!
— Eu sei, tia, e eu também sinto muito medo, mas também não quero parar a minha vida por causa dessa cidade maldita. Eu já perdi tanto tempo naquele buraco que me enfiaram à força que… eu quero aproveitar! — Disse com sinceridade. Ela me olhou no fundo dos olhos e pensou por vários segundos.
— Você tem razão. Você é muito jovem para se privar de certas coisas por causa dessa cidade que mais parece palco de alguma seita maligna, que nem as redes sociais de hoje em dia. Aliás, queria falar com você sobre isso! — Tive que rir do comparativo com as redes sociais. Ela riu comigo também e levou uma colher com sopa até a boca. — As redes sociais estão o próprio caos. É um tal de cancelamento pra cá, cancelamento pra lá, então eu vou te pedir pra pelo menos por agora não fazer parte desse meio. Vai por mim, sua situação iria piorar drasticamente!
— Pode deixar, tia. Eu não vou baixar esses aplicativos, não quero ter que ver pessoas sendo maldosas até na tela de um celular. — Ela concordou com a cabeça e comeu mais um pouco da sopa.
— Você vai nessa festa, mas não volte tarde porque as ruas são perigosas nesses horários. Vou até avisar ao Mitch porque todo cuidado é pouco! — Prontamente concordei com a cabeça.
Só conseguia achar linda toda essa preocupação. Meus olhos brilhavam e por um momento me senti a criança amada que nunca tinha sido.
— Ah, esqueci de te falar. O George veio aqui mais cedo e me deu a resposta que eu tanto queria escutar! — Disse animado. Ela respirou fundo e me olhou, já orgulhosa. — Eu consegui, tia. Eu consegui um emprego! — Ela deu um grito bem alto em comemoração e me contagiou com aquela alegria maravilhosa.
— Você me surpreendeu agora, Mark. Sendo sincera eu pensava que na sua situação você não iria conseguir, mas foi lá e conseguiu! — Eu a olhava contente. Meus olhos não paravam nunca de brilhar e isso a deixava ainda mais feliz.
— George tentou encontrar uma vaga pra mim na loja que ele trabalha no shopping, mas infelizmente não deu certo. Ele realmente queria me ajudar, tia! Ele foi numa locadora que costumava me levar quando eu era criança e conseguiu lá! — Ela ficou boquiaberta. Era de se esperar, já que nem eu estava esperando toda essa ânsia dele em me ajudar.
— Olha, agora quem me surpreendeu foi ele! Eu estou muito feliz por você, Mark. Você merece todo sucesso do mundo! Sabe bem que eu não queria que você se arriscasse tanto, mas se vai te fazer feliz, vai em frente. Eu vou te apoiar! — Minha única e possível reação foi levantar e ir direto abraçá-la.
Aproveitei para descarregar nesse abraço toda a admiração e gratidão que sentia por ela. Fazia muito tempo que não sentia tanta felicidade assim. Apesar do medo contínuo e de todas as humilhações, devo agradecer a essas pessoas que me amam e me querem bem pelo simples fato de existirem. Seria tudo diferente e, pior ainda, mais violento e difícil sem eles.
…
Era mais ou menos umas oito e quinze da noite, Mitchell e eu estávamos saindo de casa. Nem preciso dizer o quão aquele homem estava perfeitamente vestido. Ele usava uma blusa preta de mangas longas, uma bermuda branca e tênis de um azul marinho maravilhoso, enquanto eu ostentava uma calça preta, uma camisa igualmente preta sem estampas e um tênis branco que com certeza voltaria sujo de tanto pisarem no meu pé. Já prevejo meu ódio subindo a cada segundo!
Mitch sorria lindamente, animado. Eu seguia nervoso, não podia me dar o luxo de despreocupar de todas as coisas que estavam na minha cabeça e consumindo todo o meu ser. O caminho até o seu carro parecia ser longo, mas era uma distância de poucos metros. Utilizei todo o tempo para rezar e me apegar a todos os santos que minutos atrás não dava a mínima. Talvez eu estivesse sendo por um dia a representação fiel da maioria dos cristãos dessa cidade.
O caminho até o local da festa foi bastante harmonioso. Mitch tinha me contado mais sobre a vida dele, sobre sua família e suas motivações para todas as decisões que teve que tomar. Ele me contou que Matthew foi um dos motivos que o fez sair da antiga faculdade. Ele não o suportava, ao que parece o filho do juíz continuava o mesmo sem noção de sempre, o mesmo sem noção que infelizmente me apaixonei naquela época. Mas tudo isso era passado, e eu queria focar no presente.
Estávamos agora em frente à enorme casa em que estava acontecendo a festa. O som era alto, a grama já cheia daqueles copos vermelhos tópicos desses eventos e as pessoas aparentemente já estavam todas presentes, porque havia quase uma centena delas. O local era agradável, eles tocavam músicas que com certeza entrariam em minhas playlists.
Começamos a andar. Na medida que estávamos nos aproximando do núcleo de tudo, o local ficava ainda mais apertado. Era quase impossível não se perder naquela multidão e, de repente, senti a mão direita do Mitch segurar a minha. O toque foi importante, fez eu me sentir protegido naquele meio. Eu o olhei e ele me olhou de volta, soltando um dos seus mais lindos sorrisos na tentativa de me acalmar. E funcionou!
Estava me sentindo estranho por duas coisas. Primeiro porque até agora não houveram olhares estranhos. É algo bom, eu sei, mas não podia deixar de estranhar essa não-reação do pessoal. Segundo que Mitch falava com todo mundo e a maioria me cumprimentava com a cabeça também como se eu estivesse em uma posição normal. Pensei bastante enquanto andava, e a única conclusão que cheguei foi que talvez eu estivesse um tanto quanto paranóico. Vamos lá, Mark, apenas se divirta!
Mitchell me levou até uma grande mesa no quintal da casa, perto da piscina iluminada por luzes fortes submersas. Ali a música era ainda mais alta e aquela energia era muito boa de sentir. Estava todo mundo se divertindo sem se preocupar com nada e nem ninguém, era algo bonito de ver. A mesa estava lotada de bebidas de todos os tipos. Mitch me ofereceu um copo com uma bebida que nunca vi na vida, mas era bastante gostosa e não parecia ser muito alcoólica.
— Essa daí é especialidade minha, pode confiar! — Ele sorria pra mim e eu só consegui concordar com a cabeça e retribuir o sorriso. Realmente era perfeita!
A música mudou. O estilo me chamou atenção, começava com um instrumental meio épico, de ares grandiosos e um fundo mais tímido de piano. De repente a voz incomum da cantora tomou o lugar para si e os toques do instrumental continuaram dando o tom da canção.
Me perdi naquele som, ele estava me fazendo voar e prestar atenção em tudo e todos em minha volta. Meus olhos corriam para lá e para cá na velocidade que o novo tom da música mandava. Agora batidas de trap tomavam conta do local, fazendo todos diminuírem os seus ritmos e, assim que bati os olhos do outro lado da piscina, tive a certeza de que aquela música tocou no momento mais propício e me fez lembrar de coisas que já me fizeram pedir pelo amor de deus para que ficassem guardadas.
O verso do momento era como martírios ecoando pelas bocas das caixas de som. Ele acompanhava todos os meus sentimentos de agora e me fazia gritar por socorro internamente.
"Eles vão falar sobre nós e descobrir como nós nos beijamos e nos matamos"
Afinal de contas, Matthew estava do outro lado da piscina me olhando. Seu rosto estava reluzente e sua pele se mexia como ondas por causa do reflexo das águas. E, em um transe, fiquei ali parado, com um nó na garganta, vendo-o me encarar com sentimentos indecifráveis em seu olhar, e a enigmática cantora no fundo quase chorando suas composições.
"Nós dissemos que isso era melodrama"
"Nós dissemos que isso era melodrama"
"Nós dissemos que isso era melodrama"
"Nós dissemos que isso era melodrama"
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