A OUTRA
CAPÍTULO 10
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. DELEGACIA DE POLÍCIA. SALA DE INTERROGATÓRIO. INT. NOITE
Luz branca, clínica, cruel. Câmera fixa. A sala é gélida, sem identidade. Márcia, fim de festa, senta de cabeça baixa. Sangue seco escorre da testa. O batom borrado. A blusa cara rasgada. Ela parece uma atriz caída num palco errado. O silêncio é interrompido por uma voz irônica em OFF.
POLICIAL 1 - Em 1999, até o presidente dos Estados Unidos teve a cueca examinada no Congresso. (pausa) E pensar que bastou um vestido manchado pra afundar um império.
O POLICIAL 1 entra em cena. Meia-idade, grisalho, terno que viu melhores dias. Ele caminha ao redor da mesa com uma pasta em couro gasto. Cada passo tem gosto de culpa.
Márcia respira fundo, não responde. O policial se aproxima com um meio sorriso de desprezo.
POLICIAL 1 - (CONTINUA) A diferença, dona Márcia é que a Monica ainda saiu com uma bolsa da Louis Vuitton e um contrato de livro. (inclina-se para frente, sussurrando) A senhora? Vai sair daqui direto pra triagem da penitenciária feminina. E lá ninguém escreve biografia.
Márcia treme. Não chora. Não encara.
Um outro policial, jovem demais para ser tão cínico, surge da parede como sombra.
POLICIAL 2 - A internet em 2000 é tipo o seu namoro com o Bruno:
Você queria que funcionasse, mas vivia caindo.
O Policial 1 joga uma foto na mesa. CLOSE: CELESTE, ESTENDIDA NO PÁTIO DO PRÉDIO. O ROSTO ESCONDIDO PELO CABELO BRANCO, UMA PERNA TORTA COMO UM RELÓGIO QUE PAROU ERRADO.
POLICIAL 1 = Dois mortos. Um no chão, outro no coração de alguém que te amava. Qual deles você matou primeiro?
Márcia respira fundo. Treme. Uma lágrima escorre, mas ela a ignora.
MÁRCIA - (LENTO) Eu não matei ninguém.A minha mãe, eu amava ela. Do meu jeito. Ela só me odiava mais alto. E o Giuseppe ele era o único que via luz em mim. Nunca traí. Nunca.
O policial jovem ri. Um riso curto, venenoso. Ele se aproxima, dobra o corpo sobre a mesa.
POLICIAL 2 - O Brasil em 2000 inaugurava o apocalipse:
Reality show na TV, corrupção no Planalto, e a Hebe de cabelo liso. Mas e você, Márcia? Quem é o diretor da sua novela?
Márcia encara a câmera. Um olhar vazio, mas não burro. Algo acorda dentro dela. A dúvida: será que ela fez?
MÚSICA ATMOSFÉRICA, PULSANTE, COMO UMA VERDADE SE APROXIMANDO.
CORTA PARA:
CENA 2 – RUA DO LEBLON – EXT. NOITE
SONOPLASTIA – SIRENES CORTAM O AR ABAFADO. MURMÚRIOS ABAFADOS, FLASHES FRENÉTICOS. O SOM DISTANTE DO MAR BRIGA COM O BURBURINHO DA CIDADE QUE NUNCA FECHA OS OLHOS.
Celeste jaz no asfalto, coberta por uma lona preta. O contorno do seu corpo é grotescamente visível. O sangue seco escorre até a sarjeta como delineador derretido. A cena é trágica, mas já familiar.
Pereirão, delegado veterano, terno amarrotado, mas com um olhar de bisturi, fuma encostado no capô do carro da perícia. Olha para cima — a varanda de onde ela foi empurrada ainda visível.
Consuelo chega. Mesmo na tragédia, desfila com elegância. Salto agulha, bolsa de couro italiana. Ela para ao lado do corpo e mal olha. Frieza absoluta.
CONSUELO - (de forma seca) Então já sabem quem empurrou?
PEREIRÃO - (puxa o cigarro, sem olhar para ela) Caiu como o real em 99. Sem apoio, sem lastro e com todo mundo fingindo que era só uma marolinha.
CONSUELO - (sarcástica) E agora temos um cadáver e uma manchete para a Contigo. Você sabe se o nome do Eriberto já vazou?
PEREIRÃO - (ri com cinismo)
Consuelo, no mesmo domingo que o Gugu entrevista o PCC no palco, armado. E o povo aplaude como se fosse o Criança Esperança.
Você acha que alguém ainda liga pra escândalo?
CONSUELO - (morde o lábio, depois) E no dia seguinte, todo mundo volta pro brunch. (completa, olhando o corpo) Até que alguém empurra a próxima.
Silêncio. Apenas as sirenes, os flashes e o som da cidade que nunca se responsabiliza.
Pereirão joga a bituca longe e cospe no chão.
PEREIRÃO - A diferença entre pular e ser empurrado, é que só quem tava na sacada sabe.
CONSUELO - (acendendo outro cigarro) E quem sobrevive, aprende a sorrir nas fotos.
Os dois fumam em silêncio. A câmera sobe lentamente, revelando o prédio inteiro, a sacada iluminada, os vizinhos curiosos observando como se fosse novela.
CORTA PARA:
CENA 3 – DELEGACIA. SALA DE INTERROGATÓRIO. INT. NOITE
SONOPLASTIA — PELO CAMINHO - ALBERTO ROSENBLIT
Stella está impecável, apesar do cansaço. Roupa de luto, discreta, mas com classe. Um colar de pérolas falsas, porém reluzentes, repousa em seu pescoço. Os olhos delineados, o batom intacto. O relógio na parede faz tic-tac. Um ventilador gira preguiçoso no canto.
Delegado entra, com uma pasta e um olhar entre burocrático e desconfiado. Senta-se. Abre um bloco.
STELLA - (voz baixa, calculada, mas com ar comovido) Eu ainda estou em choque. A cena inteira foi um pesadelo. Eu nunca pensei que a Márcia fosse capaz de algo assim. Nunca.
FLASHBACK (RECONSTRUÇÃO DO RELATO DE STELLA)
A câmera recria os eventos sob a ótica manipulada de Stella — um estilo clássico de obras policiais em que a verdade é sempre um jogo de versões.
INTERIOR. SALA DE CELESTE. NOITE.
Márcia, descomposta, grita com Bruno, acusa-o, delira de dor e fúria. A imagem é propositalmente desfocada em alguns pontos, subjetiva.
STELLA - (OFF) Quando eu entrei, ela gritava com o Bruno. Dizia que ele e Celeste eram os culpados pela morte da filha dela. Estava fora de si.
TILT-UP para a mão de Márcia tremendo com uma arma. Um disparo. Bruno cai.
STELLA - (OFF) Ela atirou. Fria. Como se estivesse tirando um inseto do caminho.
Celeste tenta conter Márcia. As duas brigam. A arma cai. Celeste a pega. A imagem é ambígua: Stella, ao fundo, parece muito mais ativa do que admite. Mas seu rosto, na narrativa, é o da mártir.
STELLA - (OFF) A Celeste tentou tirar a arma. Elas se empurraram, foi tudo tão rápido, a Celeste foi atingida. Eu tentei impedir. Peguei o vaso. Eu só queria defender a Celeste...
CRACK! — o som seco do vaso quebrando na cabeça de Márcia.
FIM DO FLASHBACK. VOLTA À SALA DE INTERROGATÓRIO.
DELEGADO - (sem demonstrar emoção) E por que a senhora não chamou a polícia imediatamente?
STELLA - (suspiro dramático) Porque eu sabia que ninguém ia acreditar numa história tão absurda. Mulher nenhuma é ouvida nesse país — ainda mais quando elegante e bem vestida.
Ela cruza as pernas com classe. Um leve sorriso escapa. Ar de quem tem as cartas na manga.
STELLA - Mas estou aqui agora. Pela verdade. (olha nos olhos dele) Porque eu sou a única que não tem o que esconder.
Close no delegado, que engole seco. A ambiguidade no ar.
CORTA PARA:
UM PLANO LENTO DO ESPELHO SEMI-TRINCADO DA SALA, onde o reflexo de Stella se multiplica, como a própria narrativa.
CORTA PARA:
CENA 4 – DELEGACIA. SALA DE RECEPÇÃO. INT. NOITE
Luzes fracas. O ventilador geme num ritmo mole. O relógio de parede ticka como um eco de tempo sujo. É noite quente. Pesada. A recepção cheira a suor e desespero.
Giuseppe entra ofegante, molhado de chuva e suor. A camisa branca manchada de sangue seco — talvez dele, talvez dela. O rosto é o de um homem vencido. Ele olha ao redor, em transe. Os olhos vermelhos, esbugalhados. Segura um papel amassado com o nome de Márcia dos Santos rabiscado a caneta.
GIUSEPPE – (grita, à beira do colapso) MÁRCIA?! CADÊ A MÁRCIA? CADÊ A MINHA MULHER?!
Do fundo da recepção, dois POLICIAIS uniformizados trocam olhares e risos. Um deles — POLICIAL 1 — mascando chiclete alto, como quem pisa num cadáver.
POLICIAL 1 - (irônico) Ih, chegou o príncipe encantado. Vai dar show também, bonitão?
POLICIAL 2 - (com sorriso torto) Com aquela bunda, a tua Márcia vai fazer turnê em Bangu 1: “Dança na boquinha da garrafa” - versão cela 3.
Giuseppe para. Estaca. Fecha os olhos como se tivesse tomado um tiro. O silêncio dura meio segundo. Depois, ele explode —
DÁ UM MURRO no queixo de POLICIAL 1, que cambaleia.
POLICIAL 2 tenta reagir, mas é EMPURRADO contra a parede.
POLICIAL 3, mais velho, entra já com a arma na mão, gritando.
POLICIAL 3 - (alto) EI! EI!! Larga ele! Ô, GIUSEPPE!
Ele agarra Giuseppe pelas costas. A briga cessa. Fica só a respiração descompassada. Os olhos de Giuseppe fervem.
GIUSEPPE - (grita com o corpo preso) ELA ACABOU DE PERDER UMA FILHA, SEUS RATOS! UMA FILHA! ENTENDERAM?! E VOCÊS RIEM?! RIEM?!
POLICIAL 1 - (tentando se recompor, enxugando o sangue da boca) Esse daí já tá pronto pro manicômio...
POLICIAL 3 - (duro, para os outros) CHEGA! (olha para Giuseppe)
Ela tá lá dentro. Saiu do interrogatório e foi para a cela. Não morreu, não. Ainda.
Giuseppe paralisa.
GIUSEPPE - (sussurrando) Ainda?
POLICIAL 3 -(séria, firme) Entra. Mas respira fundo. A mulher que tá lá não é mais a mesma que você deixou ontem.
CORTA PARA:
CENA 5 – DELEGACIA. CELA FEMININA. INT. NOITE
Luz fluorescente, fraca e intermitente. O barulho de uma torneira pingando. RANGIDOS metálicos. Gargalhadas abafadas ao fundo. A câmera percorre o corredor sombrio da delegacia até a cela onde Márcia está sentada no chão, encostada na parede, ensanguentada, os joelhos colados ao peito, os olhos abertos e vazios.
Do lado de fora, Giuseppe, o terno amassado, manchado de sangue, se aproxima. Ele segura nas grades com as duas mãos, o rosto marcado pela dor.
GIUSEPPE - (voz baixa, quase um sussurro) Eu vim. Eu tô aqui, Márcia(demorando a dizer) Diz que não foi você.
MÁRCIA - (vira o rosto lentamente, o cabelo grudado no sangue seco)
Você acha que ainda importa?
GIUSEPPE - Importa pra mim. Eu preciso saber a verdade.
(pausa) Por Deus. Me diz que não foi você.
MÁRCIA - (com um sorriso torto, sem cor) A verdade é uma faca, Giuseppe. E hoje eu caí de peito nela.
GIUSEPPE - (engolindo em seco, sem saber onde pôr as mãos) Eu não vou embora. Nem hoje, nem nunca. (olha ao redor, toma coragem) Eu te amo. Isso também é verdade.
MÁRCIA - (baixa o olhar, uma lágrima escapa) Você ainda vai me amar quando eu for só manchete de jornal?
GIUSEPPE - Mesmo quando só restar silêncio. (aproxima o rosto das grades) Mesmo quando ninguém mais quiser ouvir teu nome.
Uma gargalhada ecoa pelo corredor, cortando a emoção como navalha.
DETENTA - (OFF) Ô novata! Aqui na cela 4 tem batizado, hein? Vem ver se aguenta!
MÁRCIA - (sem olhar, sussurrando) Pelo menos aqui, não preciso mentir mais. (pausa) Eu era um fantoche lá fora. (olha pra Giuseppe) Agora eu sou só o que sobrou.
GIUSEPPE - (olhos marejados) Mesmo assim é com você que eu fico.
CLOSE nos olhos dela — os cílios tremem. Ela pisca lentamente. Um resquício de amor, perdido dentro da dor.
A CÂMERA SE AFASTA PELA ESCURIDÃO DO CORREDOR, revelando o som da cela se fechando atrás de Giuseppe, o eco da cidade lá fora, e o som abafado de um choro contido.
CORTA PARA:
CENA 6 – HOTEL COPACABANA PALACE. BAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA – “IF IT MAKES YOU HAPPY” – SHERYL CROW
A música toca como pano de fundo, entre taças e ressentimentos.
O ambiente é refinado, mas carregado de tensão. Câmeras deslizam pelo bar art déco, captando risos discretos e olhares entorpecidos por gim-tônica e hipocrisia.
Zilda Maria está impecável em um vestido azul petróleo e um colar de esmeraldas herdado e não declarado. Ela emana o tipo de poder que não se grita, apenas se impõe. Com uma taça de espumante na mão, observa com desprezo educado a sua interlocutora.
Laurinha veste Pedro como quem consome. Tudo é de marca – mas falta alma. Até as joias parecem alugadas. Seu sorriso é branco demais, sua alegria, ruidosa e deslocada.
LAURINHA - (rindo alto, desinibida) Três por um, Zilda. A Márcia levou o Bruno, levou a mãe e de quebra, ela mesma. Isso sim é performance. A Stella que lute com esse trauma.
ZILDA MARIA - (sem olhar diretamente, sorvendo o espumante)
Você devia era estar chorando. O mundo adora uma sobrevivente. É por isso que a Jamie Lee Curtis vive ganhando papel bom, enquanto a Denise Richards, bem, essa ainda nem aprendeu a falar.
LAURINHA - (sarcástica) Uma hora alguém cala a boca dessas final girls. Nem toda rainha grita até o fim.
ZILDA MARIA - (devolvendo, afiada) É mais fácil suas rivais silenciarem você. A Stella, por exemplo, voltou do inferno com sede. E diferente de você, ela sabe o que fazer com uma sede dessas.
Laurinha finge não se abalar, mas o gole da bebida vem rápido demais.
ZILDA MARIA - (afinal, uma dama não se repete) Se for esperta, recua. Antes que vire coadjuvante na história da outra.
Close no colar de esmeraldas de Zilda, refletindo o dourado do lustre. A música segue, como se soubesse de tudo.
CORTA PARA:
CENA 7. COBERTURA DOS ALBUQUERQUE DE MEDEIROS. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
A cobertura respira sofisticação. Luz baixa. Jazz discreto ao fundo.
Eriberto, terno ainda impecável, segura um copo de uísque. Consuelo, num robe de seda italiana, fuma seu cigarro com a ponta dos dedos enluvados. A taça de cristal sobre a mesa já perdeu o brilho.
Stella entra. Rosto exausto, porém imponente. Tira os brincos lentamente.
Beija o rosto do marido. Uma mulher cansada, mas vitoriosa.
STELLA - Hoje eu só queria um banho quente e silêncio.
CONSUELO - (puxando o cigarro, com ironia seca) O silêncio é o prêmio de quem grita mais alto.
ERIBERTO - (erguendo o copo, sem sorrir) Hoje você construiu uma das narrativas mais irresistíveis do país.
Quase foi morta pela irmã, viu sua mãe morrer, o médico de confiança sangrar no carpete.
Drama grego. Ou novela das oito.
O Brasil ama esse tipo de mocinha. Sofrida. Sofisticada. Sobrevivente.
CONSUELO - O país chorou com a Dercy. Se apaixonou pela Fátima do Telecurso. E elegeu mulher que apanhava de marido em praça pública.
Desgraça, aqui, vira afeto.
STELLA - (sorri, soberana) Se é afeto, eu agradeço. Que venha.
ERIBERTO - (olhar afiado, gelado) Mas cuidado. Narrativas perfeitas não admitem pontas soltas. Se houver alguma, trate de aparar. Antes que alguém puxe o fio errado.
STELLA - (encarando-o, segura) Não tenho medo do espelho, Eriberto.
Tudo o que vivi pode ser revisto em close. Eu não tremo.
Ela se despede com um beijo leve em Consuelo. Sai rumo ao corredor.
CONSUELO - (apagando o cigarro) Ela está convencida de que venceu.
ERIBERTO - (baixo, quase para si) Os que acham que venceram… são sempre os primeiros a cair.
Eles se encaram por um instante. Silêncio denso. Jazz mais alto. Fade out.
CORTA PARA:
CENA 8. RIO DE JANEIRO. EXT. AMANHECER.
SONOPLASTIA — “QUERIDA” - DANIEL CAYMMI
Planos amplos da cidade vazia, em resquícios de névoa e silêncio. A luz azulada do amanhecer cobre os prédios da zona sul como uma manta fina e úmida. A câmera flutua pelos casarões adormecidos do Jardim Botânico, sobe pelas curvas da Vista Chinesa e depois desce com leveza até o asfalto da cidade.
Nas calçadas da Atlântica, garis recolhem restos da noite anterior. Um casal de turistas sonolentos briga por causa de um mapa. Um táxi para diante do Hotel Copacabana Palace, onde um mensageiro boceja, segurando um jornal ainda fresco.
A música avança com doçura, como se embalasse uma saudade que não se sabe de quê. O mar, lá ao fundo, quebra manso.
Corta para o centro da cidade.
A movimentação ainda tímida de pessoas. Executivos apressados. Uma senhora abre a porta de uma padaria. Um jovem dorme recostado em frente a uma agência bancária. Um entregador de jornal tropeça nos próprios passos.
A música começa a esmaecer quando vemos um carro preto estacionar discretamente diante de um prédio antigo, de fachada nobre mas maltratada pelo tempo. É o Consultório de Bruno.
A porta do carro se abre. A câmera não mostra quem desce. Apenas as pernas. Sapatos discretos, femininos. Um andar firme. A figura caminha decidida até a entrada do prédio.
A porta de ferro range. A personagem entra. A câmera permanece do lado de fora.
A música acaba.
CORTA PARA:
CENA 9. CONSULTÓRIO DE BRUNO. INT. DIA
SONOPLASTIA — “DOIS PRA LÁ, DOIS PRA CÁ” – ELIS REGINA
A luz da manhã invade o ambiente em feixes diagonais pelas persianas, projetando sombras geométricas na parede. Partículas de poeira flutuam, como se o ar estivesse preso no tempo.
A maçaneta gira com um estalo seco.
Stella entra.
Com a calma de quem sabe exatamente onde pisa.
Tranca a porta atrás de si. O som da chave ecoa como sentença.
Não há hesitação. Apenas método.
Seus olhos percorrem o ambiente com frieza quase clínica. Ela cruza a sala com passos silenciosos, firmes. Abre gavetas — uma a uma. A primeira: vazia. A segunda: desorganizada, restos de papel, um isqueiro de plástico azul, sem valor. Nada que a detenha.
Ajoelha-se diante do cofre no canto da sala. Seus dedos, ágeis, giram o disco com naturalidade. Memória muscular. Três voltas, dois toques, uma pausa.
CLIC. Aberto.
Dentro, um único envelope pardo. Encorpado.
Ela o retira como quem manuseia dinamite.
Abre. Lá estão:
— Um ECG com picos acelerados.
— Um ultrassom preto e branco, nítido.
— Um exame com seu nome.
— E o de Bruno.
— E uma palavra impressa como faca: gestação.
Stella encara os papéis. A respiração suspensa. O tempo para. Então, num gesto seco, amassa os documentos com uma raiva que ela não se permite mostrar.Guarda-os no bolso interno do casaco.
Vai até a escrivaninha.Vê um bilhete deixado por Bruno — caligrafia apressada, reconhecível.Lê. Sorriso de canto de boca. Um deboche silencioso.
STELLA - (sussurrando para si mesma) Nada mais útil na vida do que saber imitar quem a gente quer destruir.
Abre o fichário do consultório. Pega uma folha limpa. Datilografa, fria como gelo:
“Márcia,
Eu errei. Sempre amei você.
Esse filho é meu.
Largue Giuseppe. Vamos recomeçar.
Bruno.”
Assina com perfeição cirúrgica, imitando a letra de Bruno.
Exata. Irrefutável.
Ela sopra o papel com delicadeza —
Como quem sela um destino irreversível.
Recoloca o papel no fichário, tudo como se nada tivesse acontecido.
Vai embora. Sem pressa. Sem ruído.
A porta se fecha com um clique seco. A luz vibra, como se algo espiritual tivesse acabado de ser violado.
Stella está prestes a sair quando a porta se abre de novo. Selena, a secretária de Bruno, entra. Terno sóbrio, cabelo preso, olhar cortante.
SELENA - (fria, seca) O que você está fazendo aqui, Stella?
STELLA - (sorriso cínico, sem virar-se completamente) Só vim recuperar um presente que dei ao Bruno no aniversário. Tinha valor sentimental. Preferi não arriscar que acabasse no lixo junto com os outros restos.
SELENA - (caminha até a mesa, sem tirar os olhos dela) Engraçado, você está com um papel na mão. Só isso. (pausa, cruza os braços) E convenhamos, de presente, você nunca teve muito.
STELLA - (dá um passo à frente, sem se abalar) Nem tentei. Mas já que você está aqui, pensei em te fazer um convite.
SELENA - (séria) Vai tentar me comprar com charme de segunda e afeto vencido?
STELLA - (sorri com calma) Claro que não. Eu não compro. Eu contrato.
Selena a encara, mas algo em seu olhar oscila. Stella se aproxima um pouco mais, mantendo distância estratégica.
STELLA - (voz baixa, firme) Você é leal, competente e invisível pra quem manda. Mas quando esse prédio mudar de dono — e vai mudar — vai sobrar pra você. (pausa, deixa as palavras caírem com veneno) Eu, por outro lado, vou precisar exatamente de alguém como você.
SELENA - (responde num sussurro) E o que exatamente você está oferecendo?
STELLA - (toca levemente o braço dela, com precisão cirúrgica) Um lugar à mesa. E talvez uma dose controlada do meu veneno mais doce.
SELENA - (sorri, baixa os olhos por um segundo, depois volta a encará-la)
Cobra venenosa... mas irresistível.
STELLA - (inclinando-se só o suficiente) Depende da mordida. Algumas viciam.
Elas se encaram. O clima é denso, magnético. Um pacto se forma no silêncio.
O beijo acontece — lento, firme, ensaiado como um aperto de mãos entre mafiosos.
CORTE PARA:
CENA 10. APARTAMENTO DE MÁRCIA E GIUSEPPE. SALA DE ESTAR. INT. DIA
A luz entra filtrada pelas cortinas pesadas. Um silêncio incômodo paira no ambiente — o tipo de silêncio que grita.
A campainha toca. Giuseppe atravessa a sala, relutante. Abre a porta. Stella está ali. Impecável. Infiltrada de veneno e perfume caro.
GIUSEPPE - (áspero, sem cumprimentos) Veio ver o estrago que ajudou a fazer?
STELLA - (sorrindo, blasé) Vim trazer um presente. Vai gostar, prometo.
Ela entra sem pedir licença. Ele fecha a porta com força contida.
GIUSEPPE -Você não teve nem a decência de defender a sua irmã. De dizer que ela não era... o que estão dizendo.
STELLA - (olha para ele, firme) Mas era, Giuseppe.
Ela abre a bolsa e tira uma folha dobrada. Um xerox, ligeiramente amarelado. Entrega a ele.
Close no papel nas mãos de GIUSEPPE.
Leitura silenciosa. É o mesmo bilhete já visto antes:
“Márcia,
Eu errei. Sempre amei você.
Esse filho é meu.
Largue Giuseppe. Vamos recomeçar.
Bruno.”
Giuseppe olha para o papel como se fosse uma granada.
GIUSEPPE - (raivoso, atordoado) Isso é mentira. Isso é uma armação nojenta.
STELLA - (delicadamente cruel) É. Mas é uma armação convincente. Selena — lembra dela, a secretária do Bruno? — me deu uma cópia. O original, dizem, está com a polícia. Eu só quis te mostrar a realidade... ainda que ela tenha sido datilografada.
Giuseppe engole seco.
GIUSEPPE - Você falsificou isso.
STELLA - (ri baixo, debochada) Eu? Não. Mas saber que você pensa que eu seria capaz é quase um elogio.
GIUSEPPE - Isso é sórdido.
STELLA - Mais sórdido foi acreditar que ela era santa. Que estava ali do seu lado só por amor quando, na verdade, estava nos braços de outro. Até o fim. E grávida.
Giuseppe recua. O chão parece sumir.
GIUSEPPE - (caindo em si, com raiva) Você quer que eu a abandone agora. Que eu diga: “ela mereceu”.
STELLA - Não. Quero que você acorde. Que baixe a bola. Que pare de bancar o viúvo traído e o cavaleiro andante. Sua dama está atrás das grades. E vai apodrecer lá.
Silêncio. Ele respira fundo. Tenso. O papel ainda nas mãos.
STELLA - (indo até a porta) A vida continua, Giuseppe. Só não sei se com você ou apesar de você.
Ela abre a porta, sai, e a fecha com um estalo suave.
Giuseppe permanece sozinho. Em pé. Olhando o bilhete. Sem saber se rasga, se acredita ou se enlouquece.
A câmera se aproxima lentamente de seu rosto. A dúvida, a dor, a humilhação. Tudo ali, exposto, nu.
CORTA PARA:
CENA 11. DELEGACIA DE POLÍCIA. SALA. INT. DIA
Marcia está visivelmente animada, um leve sorriso tremendo no rosto ao ver Giuseppe entrar. Ele a encara, o olhar endurecido, uma mistura de mágoa e raiva contida.
GIUSEPPE - (voz baixa, carregada de desprezo) Fui um tolo, acreditei em você. Você me enganou o tempo todo.
Marcia pisca, surpresa, tenta manter a calma, a voz falha.
MÁRCIA - Giuseppe, eu (PAUSA) não é assim...
GIUSEPPE - (corta, ríspido) Não? Uma sem vergonha. Vulgar. Me fez acreditar que seria pai. E o filho não era meu. Era do Bruno.
Ele joga uma cópia do bilhete na mesa, com um baque seco. Marcia olha para o papel, confusa, desesperada.
MÁRCIA - (abalada, mas firme) Isso é armado. Uma falsificação. Você sabe disso.
Giuseppe se levanta, a expressão tensa, a voz subindo.
GIUSEPPE - Armado? Você armou tudo! Me fez de palhaço...
Eu me apaixonei por uma mentira.
Pausa pesada. Marcia tenta avançar, mas ele recua um passo, já decidido.
GIUSEPPE
(falando mais baixo, mas com amargura)
Não quero mais nada com você.
Giuseppe se vira e sai pela porta, o som da maçaneta ecoando como um estalo de sentença. Marcia fica parada, imóvel, o olhar fixo no bilhete, enquanto uma lágrima escapa silenciosa.
Silêncio. A câmera foca no rosto dela, uma mistura de dor, raiva e resignação.
CORTA PARA:
CENA 12. RIO DE JANEIRO. CLIPE MUSICAL. EXT./INT. VARIADOS. DIA/NOITE
SONOPLASTIA – DON'T TELL ME, MADONNA - VERSÃO EDITADA CONFORME RITMO DA MONTAGEM
MONTAGEM EM CLIPE — PASSAGEM DE TEMPO
Clima melancólico, elegante e irônico. A música guia o desfile cruel de quedas, glórias e máscaras trocadas.
—
01. PRESÍDIO. EXT. DIA.
Márcia, algemada, é colocada em uma van. Cabelos presos, expressão apagada. Populares gritam. Um cartaz passa pela câmera: “ASSASSINA”.
FLASH DE CÂMERA.
Repórter - (OFF) Márcia Torres chega ao presídio de Bangu acusada de duplo homicídio...
—
02. APARTAMENTO DE GIUSEPPE. INT. DIA.
Giuseppe fecha a mala. Olha o quadro de uma praia italiana, retira da parede e guarda. Uma lágrima discreta. A cidade do Rio, ao fundo, vibra — indiferente.
—
03. COPACABANA PALACE. BAR. INT. NOITE.
Consuelo entra. Stella e Laura estão em mesas separadas. O ambiente é sofisticado, mas tenso. Elas se encaram de longe. Nenhuma fala. Cada uma com seu copo e seus segredos.
—
04. PRESÍDIO. CELAS. INT. MADRUGADA.
Márcia apanha no refeitório. Uma presa cospe nela e a empurra contra a parede. Facada seca no estômago. Ela cai. A agressora murmura:
AGRESSORA -(mordaz, sussurrando) Tomara que morra, igual àquela sua mãezinha.
—
05. COPACABANA PALACE. SALA DE ENTREVISTAS. INT. DIA.
Stella, impecável em branco, em entrevista ao Fantástico.
STELLA - (séria, pausada) Se tudo isso aconteceu é porque ninguém nunca teve coragem de olhar nos olhos dela e dizer: basta.
A repórter sorri, enfeitiçada. Stella retribui com leveza. Está vencendo — pelo menos diante das câmeras.
—
06. COBERTURA DE ERIBERTO. INT. NOITE.
Luz vermelha, música alta. Homens dançam com prostitutos. Jantar opulento. Eriberto brinda, feliz, enquanto um fotógrafo registra tudo. Seu prazer virou resistência.
—
07. TELA PRETA. LETREIRO BRANCO: “Dois meses depois.”
CORTA PARA:
CENA 14. COBERTURA DE ERIBERTO E STELLA. SUÍTE. BANHEIRO. INT. NOITE
SONOPLASTIA – “UN BEL DÌ VEDREMO” – MADAMA BUTTERFLY
Plano fechado no espelho antigo: Stella, de roupão de seda azul-cobalto, encara a própria imagem. Seus olhos são calmos, quase resignados. Ela ergue a taça de champanhe, bebe um gole sem pressa. Larga a taça sobre a pia de mármore negro. A trilha lírica cresce em delicadeza.
Stella desfaz o laço do roupão. Ele desliza pelos ombros e cai lentamente. Nua, caminha até o chuveiro. Detalhe sutil em suas tatuagens — flores, letras quase apagadas, cicatrizes discretas — testemunhos do tempo. A água quente escorre, vapor sobe, e a música atinge sua plenitude.
CÂMERA ACOMPANHA, POR TRÁS, O CORPO DE STELLA ENQUANTO O VAPOR O ENVOLVE.
Corte preciso:
CHUVEIRO AINDA LIGADO.
Um novo corpo, agora 25 anos mais velho. A mesma tatuagem, agora desbotada. O mesmo nu traseiro, mas com outra textura: pele que viveu. A câmera sobe lentamente.
CLOSE NOS OLHOS DE STELLA.
O mesmo olhar do passado — agora mais intenso, mais melancólico, mais sábio.
LETREIRO NA TELA: “25 ANOS DEPOIS”.
CORTA PARA:
FIM
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