A OUTRA
CAPÍTULO 8
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE STELLA. INT. DIA
O silêncio posterior à fala de Stella paira como uma sentença.
Márcia, ainda com o bebê no colo, sente o sangue gelar. Seus braços tremem levemente, mas ela mantém a cabeça erguida. Respira fundo, como quem prepara a própria defesa.
CONSUELO - (gritando) Isso é um absurdo! Isso é um delírio! Que cena doentia é essa?! Que audácia, Márcia! A criança é da Stella, da minha filha!
MÁRCIA - (frontal, amarga) Eu só estava acalmando-a. Ninguém apareceu. Ela chorava. (olha para Stella com desprezo) E você estava ocupada demais desmaiada pra segurar a própria filha.
STELLA - (feroz, dá um passo à frente) Você ultrapassou todos os limites. Isso aqui é uma insanidade! (olha para Celeste) E você permitiu isso?!
CELESTE - (suavemente venenosa) Querida, ela estava apenas tentando ajudar. Com boa vontade, coisa rara por aqui. Talvez tenha sido o instinto materno. (sorri, satisfeita com o caos)
CONSUELO - (indignada, aponta o dedo) Isso é um crime! Isso é apropriação de um recém-nascido! (para Márcia) Você é doente! Doente! Era isso que você queria? Roubar a filha da Stella? (começa a chorar, histriônica) Vocês são malucas! Eu devia chamar a polícia!
Celeste intervém com ares de diplomata — falsa serenidade, voz doce como veneno diluído em mel.
Celeste - (sem alterar o tom) Chega, Consuelo. Isso aqui está parecendo cena de auditório barato. Márcia (fita a nora com desdém) é só uma mulher emocionada. A maternidade confunde. Ou será que vocês nunca ouviram falar de luto patológico?
ERIBERTO - (se impõe, firme, agressivo) Consuelo, basta! Você não vai chamar ninguém! (para Márcia, cortante) Agora, você se levanta, devolve a criança e sai deste quarto. Agora.
Márcia hesita. Um último olhar para o bebê. Seu peito vibra de dor. Ela beija a testa da criança com reverência e a entrega, relutante, nas mãos de Stella.
MÁRCIA - (fraca, mas altiva) Não se preocupem. Um dia, vocês vão entender a dor de perder um filho, eu só quis ajudar com o leite (vira-se para Celeste, sombria) E você, o que você está fazendo não tem nome.
Márcia sai. A porta se fecha atrás dela com um baque seco.
CONSUELO - (para Eriberto) Como você pôde permitir isso?! Na sua família?! Na frente da Stella?!
CELESTE - (calma, pegando o bebê) Parem com isso. O bebê está aqui. Está bem. E essa cena não vai mudar nada. (olha para Stella, afagando a neta) Só reforça o que eu sempre disse: o mundo é feito de quem tem poder e de quem sonha com ele.
Stella, pálida, encara Celeste com desconfiança.
STELLA - (suspeitosa) Mãe, o que você está tramando?
Celeste sorri. Um sorriso enigmático, levemente satisfeito.
A câmera fecha no seu rosto.
CORTA PARA:
CENA 2 – HOSPITAL DE PARATY. QUARTO DE MÁRCIA. INT. DIA
A luz do meio-dia invade o quarto com agressividade. O sol não suaviza o ambiente — pelo contrário, expõe as rachaduras da dignidade ferida de Márcia.
Ela entra abruptamente, como um furacão contido apenas pela dor. Os olhos estão vermelhos, mas é a raiva, não o choro, que brilha neles. As mãos trêmulas tentam manter o controle. A elegância natural dá lugar a uma fúria sofisticada, mas inegociável.
MÁRCIA - (irritada, voz firme, decidida) Giuseppe, faz as malas. Agora. Eu vou pedir alta. Não quero passar mais um minuto nesta cidade medíocre, onde até o luto é usado como espetáculo. Onde uma mãe — a minha mãe — acha normal me colocar numa situação humilhante como essa... Sem nem me avisar.
Giuseppe, sentado no sofá com o semblante exausto, levanta-se devagar. Os olhos dele são duros, fatigados. Ele a encara com compaixão, mas também com um ressentimento que já virou rotina.
GIUSEPPE - (áspero, impaciente) Ela é cruel, Márcia. Você ainda não entendeu? A sua mãe não tem o menor respeito por você. Nunca teve. Nunca vai ter. Essa mulher é um poço de veneno — e você vive mergulhando nele, achando que é água benta.
Márcia vira o rosto. A acusação a fere mais do que ela gostaria de admitir. Mas não rebate. Ela está cansada demais para justificar o injustificável.
MÁRCIA - (baixa, amarga) Ela me pediu pra amamentar. Disse que seria um gesto bonito. Que Stella precisava. Eu achei que estava ajudando.
GIUSEPPE - (sarcástico, seco) Ajudando quem, Márcia? Ela? Stella? Ou sua própria culpa? Porque a Celeste sabe — ela sempre soube — onde cutucar pra te ver sangrar. Você caiu feito uma idiota.
Márcia afasta-se. Caminha até a janela. O silêncio entre eles é espesso. Ela respira fundo, tentando conter o desespero que ameaça transbordar.
MÁRCIA - (com ironia triste) Perdi uma filha. E ganhei uma acusação pública. Um escândalo. Uma mãe me olhando como se fosse minha culpa ter sobrevivido ao parto.
GIUSEPPE - (firme, definitivo) Essa mulher te odeia. Só não te enterrou viva porque daria muito trabalho. E você ainda se importa com o que ela pensa?
Márcia fecha os olhos. Lágrimas solitárias escorrem, silenciosas. Mas ela se recompõe com a mesma força com que foi quebrada.
MÁRCIA - (frígida, ferida, mas ereta) Vamos embora, Giuseppe. Antes que essa cidade me engula viva.
Ele assente. O clima no quarto é de fim de linha. Eles não estão apenas deixando Paraty — estão deixando para trás uma ilusão de família, de afeto, de salvação.
CORTE RÁPIDO PARA:
Celeste, sozinha no corredor, escuta a conversa atrás da porta entreaberta. Um leve sorriso, venenoso, dança nos lábios dela. Ela conseguiu exatamente o que queria.
CORTA PARA:
CENA 3 – RIO DE JANEIRO. PASSAGEM DE TEMPO. CLIPE. EXT. / INT. – DIA E NOITE
SONOPLASTIA – “QUERIDA” – DANILO CAYMMI
LEGENDA NA TELA: “RIO DE JANEIRO”
APARTAMENTO DE MÁRCIA E GIUSEPPE – LEBLON – INT. DIA
O táxi para em frente a um prédio simples, mas bem cuidado. Giuseppe ajuda Márcia com as malas.
O apartamento é pequeno, mas revela zelo nos detalhes: móveis bem posicionados, vasos com violetas na janela, fotos antigas nas paredes.
Márcia entra em silêncio, e o choro contido nos olhos revela o peso dos dias em Paraty.
Giuseppe fecha a porta atrás dela. O casal está de volta ao lar — mas tudo parece diferente.
COBERTURA DE ERIBERTO E STELLA – LEBLON – INT. DIA
O elevador se abre para um hall privativo. Stella atravessa a sala com a filha nos braços, como uma santa barroca em desfile triunfal.
Eriberto vem logo atrás, tenso.
Consuelo entra por último, em silêncio. Ela observa o apartamento decorado em tons claros e austeros, como se buscasse algo que prove que ainda pertence àquele lugar.
O ambiente é frio, imaculado. A beleza do apartamento não consegue esconder o desconforto.
APARTAMENTO DE CELESTE – LEBLON, DE FRENTE PARA O MAR – INT. DIA
Celeste gira a chave da porta com elegância. Entra em um amplo apartamento com janelas abertas para o Atlântico.
A sala tem móveis de design dos anos 80, alguns já gastos pelo tempo.
Há vasos de cristal e quadros modernos nas paredes, mas há algo levemente decadente na atmosfera.
Celeste larga sua bolsa em uma poltrona de linho azul. Acende um cigarro com gestos teatrais.
Sorri para si mesma — está satisfeita com o caos que ajudou a semear.
MANSÃO DE LAURINHA – JARDIM BOTÂNICO – INT. DIA
Laurinha, toda vestida de preto, está em seu imenso closet.
Ela experimenta brincos de ônix e um colar de pérolas negras diante de um espelho antigo.
Ao fundo, uma criada dobra vestidos que ela não usa há anos.
Laurinha observa seu reflexo com uma expressão vazia — como se se preparasse para um velório que ela mesma encomendou.
APARTAMENTO DE BRUNO – LEBLON– INT. NOITE
Bruno destranca a porta. Entra. A sala está escura, bagunçada.
Joga as chaves em cima da mesa, como quem joga fora a própria dignidade.
Encosta-se na parede e respira fundo.
A consciência pesa. Ele tira os sapatos sem olhar para baixo.
Vai até a varanda e encara o Pão de Açúcar iluminado — belo demais para o homem em ruínas diante dele.
INSERÇÃO NA TELA: “15 DIAS DEPOIS”
CORTA PARA:
CENA 4. PROGRAMA DA HEBE. AUDITÓRIO. INT. NOITE. ANO 2000.
CENOGRAFIA – O palco é um luxo em dourado e tons perolados. Lustres evocam os salões de baile da Belle Époque. O sofá inconfundível de Hebe — estofado em veludo azul cobalto, com bordas cravejadas de cristais — reluz sob os holofotes. Uma plateia elegante aplaude com entusiasmo contido. A banda ao fundo executa uma versão orquestrada de “Você não me ensinou a te esquecer”.
Hebe, exuberante num vestido cintilante em prata, entra com aquele charme único. Ela sorri largo para a plateia, mas há um brilho inquisidor nos olhos.
HEBE - (voz alegre, com o carisma de sempre) Minha gente, minha plateia querida, preparem o coração... Porque hoje, no sofá mais poderoso do Brasil, temos um casal que é puro encantamento — e agora pais de uma preciosidade que o Brasil inteiro vai conhecer pela primeira vez! Com vocês: Stella Albuquerque de Medeiros e o sempre encantador pré-candidato ao senado Eriberto Albuquerque de Medeiros!
Entram Stella e Eriberto, de mãos dadas. A entrada é milimetricamente coreografada. Stella usa um vestido Chanel branco de alfaiataria impecável, os cabelos presos com perfeição milimétrica. Carrega nos braços a pequena Marisa, embrulhada em uma manta de linho bordado à mão.
HEBE - (vibrante) Olha, só faltava esse trio na minha sala! Que espetáculo!
A plateia aplaude. Hebe se levanta, beija Stella com elegância, e dá um discreto selinho carinhoso em Eriberto, depois um beijo na testa da bebê.
HEBE -(acariciando a bochecha da bebê) Parece de porcelana. Uma boneca.
STELLA - (sorriso breve, contido. Uma pausa.) Quase perfeita demais, né?
Hebe percebe. Um olhar fugaz entre as duas.
Todos se acomodam. As câmeras captam o trio com delicadeza. Um close em Stella, que mantém o sorriso ensaiado. Ela fala pausadamente, como quem mede cada palavra.
STELLA - (voz suave, compassada. A pausa certa antes da emoção)
Quando você tem um filho, você aprende a medir até o que sente.
HEBE - (olha de rabo de olho, ligeiramente provocativa)
Você tá linda, Stella, mas sempre esteve, né? Desde os tempos de como era mesmo o nome daquele musical?
STELLA - (respira, olhos semicerrados, sorri com doçura dura)
“Corações em Chamas”. Outra vida.
Eriberto entra com sua simpatia ensaiada. Seu terno Armani escuro contrasta com a luz quente do palco. Hebe se vira para ele, instigante.
HEBE - E me diga, Eriberto essa história de paternidade mudou mesmo você?
ERIBERTO - (olha para Stella antes de responder. Um instante revelador) Mudou. Sobretudo a maneira de me apresentar ao mundo.
HEBE - (maliciosa) A imprensa fala que você já tá se preparando pra concorrer ao Senado daqui a dois anos. Procede?
ERIBERTO - (sorriso ambíguo. Tom magnético) A política, Hebe é como a vida. Feita de momentos. E esse é só o começo de um ciclo.
HEBE - (piscando para a plateia) Isso é um “talvez” muito bem vestido.
Risadas. Hebe levanta uma taça de espumante. A câmera faz um travelling lento para o brinde.
HEBE - (olhando diretamente para Stella) Ao futuro. Que às vezes é mais rápido do que parece. Né, querida?
Stella sorri, mas seu olhar endurece por um segundo. A taça trêmula. Eriberto nota.
Um close revela a bebê abrindo lentamente os olhos e fitando a câmera com uma serenidade inquietante. A trilha sonora, até então suave e envolvente, ganha uma nota dissonante, quase imperceptível, que parece rachar o verniz daquela imagem perfeita. Ao lado, Stella alisa a manta da filha com uma firmeza excessiva, quase compulsiva — um gesto que trai o controle tenso por trás de seu sorriso cuidadosamente ensaiado.
HEBE - E que venha o que vier. Porque nesse palco, a gente sempre descobre a verdade com muito brilho.
Corta para a plateia, que aplaude de pé.
A câmera se afasta enquanto a imagem congela no sorriso congelado de Stella.
CORTA PARA:
CENA 5. APARTAMENTO DE MÁRCIA E GIUSEPPE. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
O pequeno apartamento no Leblon está quase no escuro, exceto pela luz azulada da TV. No sofá, Giuseppe assiste imóvel ao Programa da Hebe, onde Stella e Eriberto sorriem para as câmeras como o casal perfeito. A plateia aplaude o “primeiro selinho a três do sofá mais querido do Brasil”.
MÁRCIA - (encostada no batente, observando o marido) Você vai acabar engolindo o controle.
GIUSEPPE - (passa a mão no rosto, a voz engasgada de raiva contida) Ela pegou a minha filha no colo como se fosse dela. E agora isso. Hebe. Tapete vermelho. Selinho. E ninguém diz nada. Ninguém faz nada.
Ele se levanta bruscamente, tropeçando no tapete. Vai até o aparador e, sem querer ou não, derruba um cinzeiro de vidro, que estilhaça no chão. Silêncio. A TV ainda mostra os risos de Hebe, embalados por aplausos.
MÁRCIA - (Estoicamente) Você prometeu não quebrar mais nada esse mês.
GIUSEPPE -E você prometeu não defender quem te humilhou numa maternidade, Márcia.
MÁRCIA -Ela é minha irmã, Giuseppe.
GIUSEPPE - (elevando o tom) E nem por isso deixou de ser um monstro.
MÁRCIA - (baixando os olhos, cansada) Eu sei.
Pausa. Ela se senta na poltrona, ajeita a alça da blusa.
MÁRCIA (CONT'D) Mas eu cresci com ela. Conheço cada pose, cada mentira. E, mesmo assim, às vezes, ainda quero acreditar.
Mais um silêncio.
GIUSEPPE - (duro) Você vai dormir onde hoje?
MÁRCIA - Na minha mãe.
GIUSEPPE - (cínico) Você odeia a sua mãe.
MÁRCIA - (dolorosamente honesta) Detesto. Mas ela sabe o que é perder e fingir que venceu.
Ela vai até o quarto. Não bate a porta. Apenas some. Ele fica.
A TV agora mostra Eriberto dizendo: “Nosso lar é feito de amor e da vontade de fazer o bem ao Brasil.”
GIUSEPPE - (sussurrando para a TV) A imagem venceu.
CORTA PARA:
CENA 6. APARTAMENTO DE CELESTE. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA — "LABIRINTO" - PAULO HENRIQUE — INSTRUMENTAL
Plano fixo na porta. Um leve clique. Ela se abre, revelando Celeste, sóbria, elegante, impecável — como se cada detalhe dela dissesse: "Nada me abala".
No corredor, Márcia está parada. Cabelos presos às pressas. Olhar embaciado, mas orgulhoso. Tenta disfarçar a emoção. Fala baixo, quase como quem sussurra um pedido que lhe custa a alma:
MÁRCIA - (baixa) Briguei com o Giuseppe. Foi por minha causa… Você se importa se eu ficar aqui hoje?
Celeste não responde de imediato. A observa com a frieza de quem conhece todos os defeitos da filha — e mesmo assim, reconhece nela o reflexo do próprio passado. Um silêncio. Uma leitura silenciosa.
CELESTE - (abrindo os braços, em tom quase litúrgico) Laços de sangue, minha filha. Sempre gritam mais alto que qualquer ofensa.
Elas se abraçam. A trilha suavemente invade. Um abraço contido, sem lágrimas — mas pleno de uma intimidade ferida.
Márcia entra. Tira os sapatos com discrição. Vai direto para o banheiro. A câmera a acompanha em travelling lento até que a porta se fecha suavemente.
Som da campanhia. Uma batida seca. Outra, mais urgente.
Celeste suspira. Fecha os olhos por um segundo. Vai até a porta. Abre.
Bruno entra como um vendaval. Embriagado. Olhos marejados. Gravata solta. A fúria à flor da pele. A dor escorrendo junto com o uísque.
BRUNO - (gritando, rouco) Você acabou comigo, Celeste!
Celeste permanece impassível. Nem um músculo do rosto se move.
BRUNO - Você me fez romper meu juramento pelo meu amor a Stella! Me ensinou que tudo tem um preço, até a vida! Você é um monstro elegante!
Ele avança. Cambaleia. A sala, decorada com flores brancas, cristais e tapeçaria francesa, contrasta com a cena grotesca. Um altar de aparências.
CELESTE - (calma, cortante) Você que optou pelo atalho, Bruno. Só os fracos terceirizam a própria culpa.
Márcia surge na porta do corredor. Sem maquiagem, envolta numa toalha, cabelos ainda molhados. Observa Bruno, perplexa. A voz sai firme, sem gritar — como uma lâmina que corta o ar.
MÁRCIA - (seca) O que ela te obrigou a fazer?
CLOSE EM CELESTE. O rosto é um escudo. Apenas os olhos traem: raiva contida, desprezo e algo próximo à dor.
CLOSE EM BRUNO. Ele vacila. Boca entreaberta. A verdade pesa demais.
CLOSE EM MÁRCIA. Ela fita a mãe como quem vê uma esfinge vestida de seda. Insondável. Perigosa.
CÂMERA RODA SUAVEMENTE PELO AMBIENTE
O som da trilha cresce.
A tensão paira como um gás inflamável.
CORTA PARA:
FIM
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