A OUTRA

CAPÍTULO 11

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI



CENA 1 – CONTINUAÇÃO IMEDIATA. BANHEIRO DO APARTAMENTO DE STELLA. CHUVEIRO. INT. NOITE


SONOPLASTIA – “EROTICA” – MADONNA

 

Vapor denso toma conta do ambiente. A luz invade o box por entre a fumaça como numa pintura renascentista deturpada. Tudo é quente, úmido, saturado de intenções.

Selena Vasconcelos (Selena Tigrona) entra nua, dona do próprio corpo como quem atravessa uma passarela — ou um campo de batalha. O cabelo encharcado gruda em sua pele como serpentes.

Stella Albuquerque De Medeiros, de costas, deixa a água escorrer pelas omoplatas com um misto de tédio e provocação. O silêncio é tenso, erótico.

SELENA - (com um sorrisinho enviesado, quase maternal) Vai sair do banho ou quer que eu chame reforço? Minha cobra charmosa anda carente.

STELLA - (sem virar, mas sorrindo) Só saio se tiver prêmio. Hoje acordei querendo (pausa) um veneno doce na boca.

Selena se aproxima lentamente, os pés ecoando contra o piso molhado. Cada passo é um compasso coreografado da sedução.

SELENA - (em voz baixa, quase um sussurro) Cuidado. Meu veneno é lento. E vicia.

As duas se encaram no reflexo embaçado do espelho. O primeiro toque é quase casto, de mãos que se conhecem e se testam.

O beijo começa tímido, como se retomassem um ritual antigo. Aos poucos, a tensão explode. A trilha se intensifica.
Línguas, dentes, unhas.
 Corpos que se desejam, mas também se vigiam. Há mais do que tesão: há poder, conspiração, necessidade de domínio.

Cortes precisos mostram mãos na parede, dedos no pescoço, sussurros abafados entre jatos d’água.
A câmera capta detalhes com respeito estético: a nuca de Stella sendo mordida suavemente, os olhos de Selena semicerrados — dominadora e entregue.

A trilha vira um mantra sombrio, como se algo estivesse sendo selado. Um segredo. Uma vingança. Um crime.

A cena termina com as duas coladas uma na outra, escorrendo desejo e intenções, fundidas sob a água escaldante.
Olham-se como cúmplices. Não há amor. Há pacto.

O vapor do banho turco começa a rarear, como se o ar também estivesse cansado de fingir. Selena ainda encostada em Stella, a respiração entrecortada, o olhar semicerrado. Há prazer, mas também cálculo.

SELENA – (despretensiosa, como quem testa o veneno)
Essa sua carência toda é só saudade da irmã que vai sair da cadeia? Ou você tem medo do que a Márcia vai lembrar?

Stella sorri com a calma de quem não teme, apenas despreza. Não recua. Olha para Selena como quem observa uma joia com defeito.

STELLA – (quase maternal, mas venenosa)
Você tá tão bonita hoje, mas a língua continua um perigo.
(um silêncio, depois baixa o tom)
Se continuar assim, vai acabar descobrindo o quanto a Cobra Charmosa ainda sabe ser dura. E cruel.

As mãos de Stella descem com naturalidade calculada até o meio das pernas de Selena. Não é um gesto de carinho. É um lembrete de domínio.

Selena arqueja, mas não se entrega. Sorri, cínica.

SELENA – (encarando) Acho engraçado (geme)você só se excita quando alguém te ameaça.

STELLA – (sussurrando) Eu só respeito quem me dá trabalho.

Uma respiração profunda preenche o espaço. O vapor volta a subir, lento, espesso, como cortina fechando sobre um espetáculo perigoso.

CORTA PARA:

CENA 2 – PRESÍDIO FEMININO DE BANGU. ÁREA COMUM. INT. NOITE

Luzes fluorescentes. O ambiente tem um zumbido constante, abafado pelas vozes das detentas e o som da TV velha, suspensa por correntes no canto da sala. Algumas mulheres assistem, outras jogam dominó ou cochicham. Márcia Ferraz, sentada com expressão dura, observa a televisão com atenção. Ao lado dela, uma detenta mascando chiclete acompanha o programa.

 

NA TELEVISÃO – REPORTAGEM ESPECIAL – LACRE TV

Imagens de arquivo: Eriberto Albuqerque De Medeiros jovem, elegante, discursando no Senado. Corte para os palanques lotados durante a eleição ao governo do Rio. A voz da repórter, empolada e afetada, narra:

VOZ DA REPÓRTER - (OFF)Eleito senador pelo Rio de Janeiro em 2002, Eriberto de Medeiros enfrentou, à época, o maior escândalo familiar de sua vida: sua cunhada, Márcia Ferraz — irmã de sua esposa Stella — foi acusada de matar a própria mãe, a socialite Celeste de Medeiros, além de um renomado obstetra da Zona Sul — amigo íntimo da família e, segundo a denúncia, amante de Márcia. A tragédia quase tirou a vida da esposa de Eriberto, a empresária Stella Albuquerque de Medeiros, que sobreviveu com sequelas emocionais.

Corte para imagens de Eriberto, hoje: sorriso impecável, cumprimentando populares numa comunidade carente.

VOZ DA REPÓRTER -(OFF, CONTINUAÇÃO) Reeleito ao Senado em 2010 com mais de 60% dos votos, Eriberto foi eleito governador em 2018 no segundo turno e reeleito em 2022 com mais de 70%. Aclamado como o ‘governador da moral e dos bons costumes’, ele faz questão de destacar o valor da família em sua trajetória.”

Corte para fala de Eriberto em evento público:

ERIBERTO - (NA TV) A verdadeira mudança começa no coração da família. É ali que se forma o cidadão de bem.

Corte para Consuelo Albuquerque, a tradicional matriarca da família, mãe de Eriberto, em entrevista descontraída:

CONSUELLO (NA TV)
“Ele é tão bonito quanto o Collor, mas dessa vez podem ficar tranquilos: não vai mexer nas suas poupanças!”

Corte para Stella, esposa de Eriberto, elegante, com ar contido, falando sobre a filha do casal:

STELLA - (NA TV) Marisa é meu maior orgulho. Uma artista. Uma mulher íntegra. Um tesouro.

Imagens de Marisa, filha de Stella e Eriberto, tocando em uma grande balada em São Paulo. Beat eletrônico e gritos de fãs.

DE VOLTA AO PRESÍDIO

Márcia respira fundo, os olhos fixos na imagem congelada da irmã na TV. A detenta ao lado, chamada apenas de Pepa nos registros do presídio, mastiga o chiclete devagar.

PEPA - Bonitona, tua irmã. Tem cara de santa.

MÁRCIA - (seca) É uma víbora.

PEPA - (curiosa) E nunca te visitou?

MÁRCIA - Nunca. Nem uma carta. Nem uma mensagem. Nem uma ligação.

Márcia agora fala baixo, mas sua voz está embargada de rancor e mágoa contida.

MÁRCIA -(CONTINUAÇÃO) Me acusou, me condenou e sumiu. Não quis ouvir uma palavra. Eu me culpo pelo que aconteceu. Pela tragédia daquela noite. Mas a verdade? Eu não sei o que de fato fiz. Só sei o que os jornais disseram.

PEPA – Ih (PAUSA) então liga o alerta, querida. Quando a história parece toda bonitinha, é porque alguém tá ganhando com isso.

Márcia vira o rosto devagar, como se fosse pela primeira vez considerar a possibilidade de uma verdade oculta. Olha de novo para a tela — imagem congelada de Eriberto, sorrindo.

MÁRCIA - (baixo) Eles transformaram meu inferno no trampolim político deles.

Câmera se afasta, mostrando as grades altas do teto e o som da TV voltando baixo, abafado.

CORTA PARA:

 

 

CENA 3. RIO DE JANEIRO. AMANHECER. EXT.

 

SONOPLASTIA – “PELO CAMINHO” – ALBERTO ROSENBLIT

 

O sol começa a surgir sobre o horizonte carioca.

IMAGENS DE ARQUIVO e PLANOS AÉREOS da cidade do Rio de Janeiro ganham uma aura melancólica: o mar tocado pela primeira luz do dia, os morros ainda sombreados, a cidade acordando devagar.

CORTE GRADUAL para a ZONA OESTE. A música continua.

EXTERIOR – PRESÍDIO FEMININO DE BANGU – CONTÍNUO

As grades do portão se abrem com um ruído metálico.

Márcia Ferraz, sai lentamente. O tempo pesou, mas ela conserva uma altivez orgulhosa. Veste roupas simples, discretas, e carrega um único envelope pardo nas mãos.

A primeira luz da manhã toca seu rosto com suavidade.

Ela inspira fundo.

CORTE ANGULADO — DO OUTRO LADO DA RUA, encostada em um carro popular velho, azul desbotado, uma mulher observa: Evelyn Andrade, jeans puído, camiseta branca, cabelos presos, cigarro entre os dedos. Ela a reconhece.

Márcia para. As duas trocam um olhar à distância.
Nenhuma palavra. Apenas a música.

CORTE FINAL — Márcia, de costas, caminhando em direção ao carro. A câmera sobe lentamente até revelar o céu claro sobre o presídio.

CORTA PARA:

CENA 4. CARRO POPULAR. INT. DIA

SONOPLASTIA – TRÂNSITO EM COPACABANA, RÁDIO AM COM RUÍDO DE FUNDO, UM PIANO DISTANTE ENTRE AS FREQUÊNCIAS

O calor carioca parece castigar o asfalto. Dentro do carro parado no engarrafamento da Avenida Atlântica, o ar rarefeito carrega um desconforto que não vem só da temperatura.

Evelyn, compostura elegante, fala com a voz baixa de quem aprendeu a não se desesperar em público. Dirige com os dedos tensos no volante, sob a sombra de um óculo escuro. Ao lado, Márcia, marcada pela vida, observa a rua sem ver. Suas roupas são discretas, limpas, sem vaidade. Uma garrafa d’água quente esquecida no porta-copos.

EVELYN - (olhando de relance, quase num sussurro) Obrigada por ter vindo.

MÁRCIA - (frontal, sem olhar) Eu tive escolha?

EVELYN - (mais firme do que gostaria) Mandei cartas. Liguei. Esperei.

MÁRCIA - (cortante) Você é jornalista. Eu não falo com jornalistas.

EVELYN - (sem se abalar) Mas está aqui.

Pausa. Um vendedor de água se aproxima, mas ambas ignoram. O sol desenha uma linha de suor na nuca de Márcia. Ela gira o rosto lentamente e encara Evelyn. A voz sai seca, sem piedade.

MÁRCIA - Porque achei comovente (com ironia sutil) seu agradecimento ao Bruno. O homem que te ensinou a sobreviver aos catorzes anos, num país onde isso costuma terminar em vala.

EVELYN - (engole seco, olhos marejando, mas sem ceder) Ele foi o primeiro a me tratar como gente. (com verdade) Sem me olhar como aberração. Ou como mercadoria.

O rádio chia. Ao fundo, um locutor fala algo sobre um "incidente policial em Madureira". As palavras se dissolvem no ruído branco do tempo e da cidade.

MÁRCIA - (voltando a olhar a rua, em voz baixa) Eu também nunca entendi por que ele morreu.

Pausa. O olhar das duas se cruza. Entre o ressentimento e uma dor compartilhada, nasce uma cumplicidade silenciosa. São de mundos diferentes, mas a ferida é a mesma.

EVELYN - Talvez a gente descubra juntas. (um fio de esperança) Ou pelo menos encontrar alguma paz.

CORTA PARA:

 

CENA 5. PALÁCIO GUANABARA. ESCRITÓRIO DO GOVERNADOR. INT. DIA

O ambiente é luxuoso e imponente. Uma bandeira do Brasil tremula suavemente perto da janela. ERIBERTO, elegante mas tenso, conversa com o CAPITÃO NEVES, que gesticula com fanfarronice. CONSUELO está sentada, impaciente, folheando uma revista de política. STELLA observa tudo com um sorriso treinado. ALICE, discreta mas atenta, entra com um tablet nas mãos.

ERIBERTO - (firmando a voz) Não é uma decisão simples. O país tá dividido, e o povo exausto.

CAPITÃO NEVES - (ri alto, debochado) O povo precisa de ordem, governador! De um homem que bata na mesa, e de uma mulher que segure as pontas com elegância. Se o senhor for candidato, o Brasil vai ter a primeira-dama mais linda da história! (stella sorri, sem graça) Só espero que minha esposa não esteja ouvindo isso...

STELLA - (diplomática) Seu elogio honra, Capitão. Mas beleza não ganha eleição. Estratégia, sim.

CONSUELO - (sarcástica, sem levantar os olhos da revista)
Beleza ajuda sim, querida. Pergunta pra finada Evita Perón (ri) Só não pergunte pra Carla Zambelli, porque ela pode te meter um 38 na cara.

CAPITÃO NEVES - (rindo mais ainda) A Consuelo é fogo! É por isso que eu digo: mulher que fala o que pensa, ou vira presidente ou assusta muito homem frouxo.

CONSUELO - (ereta, dramática) Eu não assusto, querido. Eu desmascaro. O problema do Brasil nunca foi a esquerda ou a direita. É o centro covarde, que só pensa em eleição e nunca em revolução.

ERIBERTO - (alfinetando, leve) E eu achando que você vinha só pra tomar café.

Alice se aproxima discretamente, estende a mão para Stella.

ALICE - Com licença, Alice Leitte. Fui chamada pra coordenar a comunicação da possível campanha.

STELLA - (sorriso profissional) Ah, sim. A consultora de marketing. Prazer.

Stella aperta a mão de Alice com frieza educada, examinando-a como quem avalia um quadro falsificado.

CAPITÃO NEVES - (olhando Alice de cima a baixo) É nova, hein? Tomara que não seja dessas marqueteiras que querem lacrar no TikTok.

CONSUELO - (rindo) Se for, melhor. A direita também precisa de um pouco de lacre. Mas com classe, tá, Alice?

ALICE - (sem perder a compostura) Classe e resultado, dona Consuelo. Um bom slogan ganha voto. Mas é o escândalo que elege.

Todos se entreolham. Stella ergue uma sobrancelha. Eriberto dá um leve sorriso — não se sabe se de nervoso ou interesse. Consuelo fecha a revista com um estalo.

CONSUELO - Pois é. A diferença entre um escândalo útil e um desastre é quem tá no controle da narrativa. Espero que, dessa vez, sejamos nós.

CORTA PARA:

 

CENA 6. PALÁCIO GUANABARA. ESCRITÓRIO DA PRIMEIRA-DAMA. INT. DIA.

Luxuoso, mas frio. Cortinas pesadas. Um quadro oficial do governador sorri falso atrás da mesa. Consuelo, em um vestido claro, toma um chá. Stella entra, elegante, segura de si. As duas se sentam, em silêncio por alguns segundos.

CONSUELO - (com um sorriso cínico) Então, a nossa mártir saiu da cadeia. Márcia Ferraz, livre. Já está nas ruas a essa hora, provavelmente dando entrevista pra algum blogueiro decadente.

STELLA - (imperturbável) Já cuidamos disso. Márcia não vai atrapalhar ninguém.

CONSUELO - E se atrapalhar? Você sabe que eu detesto reaparições do passado. Principalmente quando vêm vestidas de ressentimento.

STELLA - Márcia não vai durar. Ela não tem mais chão, não tem mais ninguém. E se insistir em criar caso, o Rio tem seus mecanismos naturais de silenciamento.

CONSUELO - (sorri, levanta a xícara) Milícias são como cães. Fiéis, famintos e letais. Basta um assobio.

STELLA - (calmamente) Se for preciso, eu mesma assobio.

As duas trocam um olhar gélido. O silêncio diz mais do que mil palavras.

CORTE PARA:

CENA 7. APARTAMENTO DE EVELYN. SALA DE ESTAR. INT. DIA

O apartamento de Evelyn é modesto, mas cuidado. Poucos móveis, tudo no lugar. O silêncio entre as duas é denso.

Márcia caminha pela sala, olhos curiosos. Evelyn fecha a porta atrás de si, com certa solenidade.

EVELYN - (seco) Pode ficar no quarto de hóspedes. Tem toalha limpa no armário.

MÁRCIA - (com um fio de voz) Obrigada. Eu nem sei por onde começar.

Evelyn caminha até uma parede decorada com uma grande pintura abstrata. Ela a desliza com precisão, revelando o inesperado: uma parede coberta por reportagens, fotos, recortes e anotações.

Um mural do horror: as manchetes do assassinato de Celeste e Bruno, o velório, uma nota antiga sobre Stella. No centro, um recorte amarelado com a frase: “Ela viu tudo.”

MÁRCIA paralisa.

MÁRCIA - (tenta sorrir) Você virou detetive?

EVELYN - (não olha pra ela, sarcástica) Virei jornalista. A gente aprende.

O silêncio pesa.

MÁRCIA -Isso é coisa armada. Parte disso é invenção, coisa plantada.

EVELYN - Talvez. Mas e o resto?

Marcia se aproxima, lê uma manchete: “Dupla morte choca sociedade: disputa por herança ou crime passional?”

Ela recua, pálida.

MÁRCIA - (baixa) Preciso caminhar.

EVELYN - Vai. Mas volta. (olhos cravados nela) A gente ainda não terminou.

Márcia sai, atordoada. Evelyn permanece ali, olhando o mural. Seus olhos não têm raiva. Têm algo pior: lucidez.

CORTA PARA:

 

CENA 8. PALÁCIO GUANABARA. ESCRITÓRIO DA PRIMEIRA-DAMA. INT. DIA.

 

Luxo sóbrio. Cortinas pesadas filtram a luz do sol. Stella está sentada, com um tablet nas mãos, aparentando calma. A porta se abre bruscamente: Selena entra, com os olhos faiscando.

SELENA - (com ironia) Nem um “veneno doce” pra essa alma aflita?

STELLA - (rindo, sem levantar os olhos) Se você sobreviver ao que veio dizer, talvez ganhe dois.

SELENA - (puxando uma cadeira, direta) Marisa. De novo. Agora custou cem mil dólares e um favor pros milicianos.

Stella ergue o olhar, tensa. Selena desliza o tablet sobre a mesa. No vídeo, Marisa, rindo, cheira cocaína no camarim, cercada de amigas. A trilha do riso é uma facada no silêncio do ambiente.

STELLA - (veneno nos olhos) Essa garota nasceu pra me enterrar.

SELENA - (sentando-se ao lado dela, cúmplice) Já tratei. O vídeo sumiu. E contratei um segurança – dos nossos. Ela não vai levantar o braço sem que saibamos.

STELLA - (suspiro pesado) Você é a única que ainda sabe jogar.

Um silêncio carregado de tensão e desejo. Selena a encara com firmeza. A música “Erotica”, de Madonna, começa a tocar ao fundo, como se surgisse de dentro da cena, de algum rádio distante — ou da mente de uma das duas.

SELENA - (sussurrando) Cobra Charmosa...

STELLA - (fixando os olhos nela) Veneno Doce...

O tempo parece parar. SELENA aproxima-se e toca o rosto de Stella, que fecha os olhos. A tensão explode em um beijo intenso. Selena desabotoa a blusa de Stella, revelando pele, poder e vulnerabilidade. O beijo continua, profundo. Não há pressa. Não há vulgaridade. Apenas urgência, história e paixão não ditam.

Corta para o alto das janelas. As cortinas balançam suavemente com o vento do Rio, enquanto a música cresce.

CORTA PARA:

 

CENA 9. APARTAMENTO DOS FERRAZ DINIZ. SALA DE ESTAR. INT. DIA

 

SONOPLASTIA  “EU PRECISO DE VOCÊ” – VERÔNICA SABINO

A luz dourada do fim da tarde atravessa a persiana. Tudo na sala tem bom gosto — mas um bom gosto que parece exaurido, como se estivesse ali apenas por memória, não por desejo.

Giuseppe está sentado à mesa, escrevendo num caderno antigo. A caligrafia revela esforço — ou contenção. A música toca como lamento velado.

Carolina surge, vestida como quem se recusa a aceitar o fim do dia — ou da juventude. Salto alto, perfume marcante demais para o ambiente, maquiagem borrada no canto do olho.

CAROLINA - (sarcástica) Já descobriu em qual cela enfiaram tua ex-mulher, Giuseppe? Ou segue escrevendo ficção barata pra não encarar o próprio roteiro?

Giuseppe levanta os olhos com serenidade cruel. Fecha a caneta com cuidado.

GIUSEPPE - Ainda não são seis da tarde, Carolina.

CAROLINA - (se aproxima, desequilibrada pelo álcool e pela mágoa) Pra você, ainda é cedo pra sentir vergonha. Mas pra mim… já passou da hora de parar de fingir que esse Leblon é algum tipo de prêmio de consolação.

Ela anda pela sala como uma atriz velha conhecendo a coxia. Passa o dedo em livros, afaga com desdém a almofada cara. Tudo nela é ensaio e ressentimento.

CAROLINA - Você se esconde nessas tuas histórias de detetive existencial… e eu, Giuseppe? Eu me tornei o quê? A síndica do fracasso? A estilista de almofada? A mãe de um garoto criado pra fingir que o pai presta?

GIUSEPPE - (sem se levantar) Você podia ter sido uma advogada brilhante. Mas escolheu posar de mulher de escritor — e agora odeia o papel que você mesma assinou.

CAROLINA - E você? (aproxima-se, olhos brilhando) Você ainda acende vela pra uma filha que nasceu morta… e nunca olhou de verdade pro Marcelo. Seu filho. Seu espelho.

GIUSEPPE - Marcelo não merece o peso do que eu fui — ou do que você virou.

Ele se levanta, caminha até a estante, pega as chaves.

CAROLINA - (ferina, gritando) Você se esconde atrás de tragédia, Giuseppe! Você é um frouxo. Foge da Márcia, da filha morta, de mim e do Marcelo que está respirando bem na sua frente!

GIUSEPPE - (pausa, seco) Você quer mudar de vida? Começa sendo mãe. Depois tenta ser mulher. E só então — se sobrar coragem — vira gente.

Ele abre a porta.

CAROLINA - (último golpe, ensanguentado de dor) Você nunca foi homem, Giuseppe. Foi só um rascunho com pretensão de épico.

Ele sai. A porta bate.

Carolina permanece ali, sozinha, ofegante. Escorrega até o chão como um vestido de gala esquecido numa cadeira. A maquiagem derrete. Mas a beleza, mesmo decadente, ainda resiste — como uma atriz que esqueceu que a peça já acabou.

CORTA PARA:

 

CENA 10. RIO DE JANEIRO. EXT. ANOITECER.

 

SONOPLASTIA – “ABRÁZAME ASÍ” – ROBERTO CARLOS.

 

A noite cai sobre o Rio de Janeiro. O céu se tinge de tons azul-escuros e alaranjados. A cidade desacelera. As luzes começam a acender. Há uma beleza melancólica no ar.

A música preenche a cena — doce, íntima, carregada de memória.

Estamos no coração do Leblon, em uma rua tranquila, onde o tempo parece escorrer mais devagar. Diante de um prédio antigo, discreto e bem cuidado — o endereço onde Márcia e Giuseppe viveram juntos.

De uma esquina, surge Márcia. Vem caminhando devagar, como quem reconhece cada passo. Está arrumada com simplicidade. O cabelo agora solto. O envelope pardo já não está em suas mãos.

Da esquina oposta, vem Giuseppe. Barba por fazer, o andar hesitante. Carrega uma sacola de supermercado com uma garrafa de vinho e um pão ainda quente. Ao longe, vê Márcia — e para.

Ela também para.

Ficam cara a cara, separados apenas pela calçada e por 25 anos de silêncio.

A música continua, suave.

Nenhum deles diz nada. Os olhos falam antes das palavras. É como se o tempo parasse por um segundo.

CORTA PARA:

Uma janela no prédio, iluminada por dentro. O reflexo da rua na vidraça distorce as figuras dos dois.

CORTA PARA:

 

CENA 11. PALÁCIO GUANABARA. ESCRITÓRIO DO GOVERNADOR. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – (I CAN’T GET NO) SATISFACTION – THE ROLLING STONES

 

As janelas altas revelam o céu escuro do Rio de Janeiro. A cidade brilha ao fundo, mas ali dentro o clima é outro: denso, íntimo, elétrico. A luz é baixa, cortinas pesadas filtram a claridade dos postes e a iluminação urbana. O abajur sobre a mesa projeta sombras quentes.

Eriberto está recostado em sua poltrona de couro, camisa semiaberta, paletó jogado no sofá. Fuma um cigarro com expressão satisfeita, mas os olhos atentos, predadores.

Alice entra silenciosa, vestindo uma camisa social dele, desabotoada até o limite do provocante. Traz outro copo de uísque, que serve com elegância. Caminha até a porta e a tranca com firmeza.

ALICE - (inclinando-se sobre a mesa, sussurrando) Chegou a hora de comemorar, meu carioquinha. A campanha começou.

ERIBERTO - (ergue-se lentamente, a observando como uma presa) Essa comemoração vai entrar pra história, gauchona.

Com um gesto firme, ele a agarra pela cintura e a deita sobre a mesa de madeira nobre. Ela ri, cúmplice e rendida. Ele a beija no pescoço, deslizando pelas alças da camisa. A tensão cresce, os gestos são ritmados, instintivos.

Ele levanta sua saia devagar, sem pressa, encarando-a. Em seguida, retira a calcinha com os dentes, provocativo, sem quebrar o contato visual. A música ganha corpo. Eles estão sozinhos no mundo.

ALICE - (rindo, arrepiada) Meu carioquinha louco...

ERIBERTO - (roçando os lábios nos dela) Minha gauchona perigosa...

O beijo é quente, demorado, entre suspiros e promessas silenciosas. A câmera se afasta, captando a penumbra elegante e o reflexo da cidade nas janelas. A música explode no refrão.

CORTE PARA:

CENA 12. RUA DO LEBLON. EXT. NOITE

 

SONOPLASTIA – “ABRÁZAME ASÍ” – ROBERTO CARLOS.

 

A rua elegante, silenciosa, no coração do Leblon. A luz dos postes desenha sombras nos rostos de Márcia e Giuseppe, frente a frente, depois de tantos anos.

MÁRCIA - (áspera, voz embargada) O que você tá fazendo aqui? Vinte e cinco anos, Giuseppe. Vinte e cinco. E você não teve coragem de me visitar uma vez sequer na cadeia. Nem uma.

Silêncio.

Giuseppe abaixa o olhar. Seu rosto endurecido vacila por um segundo. Ele dá um passo à frente, hesita, estende a mão, quase toca o braço dela. Quase.

Márcia recua, gelada.

CORTE SECO PARA:

 

FIM

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